Um imprevisto engatado em outro me arremessou em 2024. Era 3 de janeiro e eu ainda não tinha assimilado que estava com os dois pés num novo ano. Preciso me orientar, atinei. Em seguida, sentei-me no tapete de ioga, acendi uma vela, peguei o oráculo que havia ganhado de presente semanas antes, entoei uma prece e me abri para receber o que o plano sutil quisesse me ofertar.
Achei que escolheria apenas uma carta. Como se minhas mãos se movessem por conta própria, acabei pescando três. Enfileirei-as no altarzinho que mantenho em meu quarto e, com a ajuda do livreto explicativo, tentei decifrar o que aquela sequência de símbolos queria me dizer. Nossa! O recado do meu inconsciente projetou um feixe de luz, e eu consegui enxergar o chão onde haveria de pisar nos dias vindouros. Dali em diante, a calma e a confiança passaram a ser minhas guardiãs.
Poder transformador
É surpreendente como um ritual singelo e intuitivo pode transformar nosso estado interno. A mudança chega a ser palpável. No meu caso, a mente relaxou, o abdômen se soltou e meus lábios se esticaram, trazendo de volta ao rosto um sorriso suave. Ufa!
“Nossa psique funciona com símbolos e o ritual é o símbolo em ação, em movimento, uma forma de usarmos a linguagem metafórica que acalma e alimenta a alma. Algo muito importante para a vida psíquica”, explica Cristina Balieiro, psicoterapeuta junguiana, coordenadora de círculos de mulheres e autora dos livros O Legado das Deusas, volumes 1 e 2 (Pólen Livros), entre outros títulos.
Ritos de passagem
“Os rituais podem marcar uma nova fase individual ou uma transformação coletiva, além de significar celebração. Por meio dessas práticas simbólicas e de seus elementos, como velas, flores, oferendas, comidas, cantos e danças, nós despertamos e movemos a energia psíquica para acessar níveis mais sutis de percepção”, complementa Paula Diniz, psicoterapeuta corporal e Moon Mother, condutora da Bênção do Útero, composta de meditações e visualizações guiadas com o intuito de reverenciar a ancestralidade feminina.
Paula considera a existência de, pelo menos, quatro patamares de realidade: físico ou material, mental ou psíquico, simbólico e espiritual ou inconsciente. “Como este último não tem forma, a gente só o acessa por meio dos símbolos. E o impulso de dedicar um tanto da nossa energia aos rituais particulares do cotidiano vem da necessidade de conexão com esse nível inconsciente, um tipo de inteligência superior à do ego e que direciona a nossa vida”, esclarece ela.
Além de alterar a percepção sobre nós mesmos e sobre a realidade, nos ajudando a mudar padrões, comportamentos e fazer novas escolhas, a transformação da energia psíquica promovida pelo ritual também pode reverberar no nível físico, fazendo a gente se sentir melhor e levando até à cura de doenças.
Tempo gentil
Enquanto eu estava imersa em meu pequeno ritual de início de ano, parecia que havia atravessado um portal. Me senti em outro espaço, pulsando numa cadência mais branda, embora continuasse no mesmíssimo lugar. Ouvindo Cristina Balieiro, compreendi que o gesto de me interiorizar, num ambiente propício para o encontro comigo mesma, me fez migrar de Cronos para Kairós, ou seja, do tempo do relógio para o compasso da alma.
“Nesta vida louca que a gente leva, cheia de telas, informações, estímulos e demandas, a gente esquece de perceber a realidade interior, e o ritual também serve para marcar isso, pois ele privilegia o tempo psicológico”, afirma a psicoterapeuta.
A ausência de pausas, introspecção e reverência a algo que está além da compreensão racional – uma fonte de sabedoria que é velha conhecida da intuição – faz os dias se empobrecerem. Por causa desse lapso, a aridez do sentir tende a se alastrar.
Mas a alma pede socorro de vez em quando, aflita frente a um mundo rápido, barulhento, exigente, fissurado pelo lado de fora. “O ritual ajuda a aquietar a mente incessante e faz a gente se aproximar das partes mais profundas que nos compõem, além de nos ligar ao fluxo da vida e àquilo que realmente importa”, reforça Cristina.
Rituais cotidianos
Inclusive a importância dos momentos ritualísticos para a saúde do nosso ser recebeu a defesa do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, crítico da veloz e produtivista sociedade contemporânea. No livro O Desaparecimento dos Rituais: Uma tipologia do presente (Vozes), ele resgata a poesia desse gesto.
“Rituais transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável. Sim, fazem-no viável como uma casa. Ordenam o tempo, mobíliam-no”, diz o filósofo.
Bianca Castiglione recorre a essa “ordenação” para se manter nutrida e saudável. Ela é mãe atípica de Bento, 7 anos, e de Cora, 2 anos, além de terapeuta, facilitadora e gestora de projetos sociais. Tempo de sobra, não tem. Mas aprendeu a abrir clareiras na rotina – ainda que breves e pontuais – para se encontrar com seu “eu” profundo e se ligar ao mistério maior.
“Ritualizar de maneira simples e rápida me ajuda a voltar ao meu eixo e seguir com a vida, eu de fato estando nela, me habitando. A cada acender de velas, a cada respiração, a cada flor que colo dentro de casa, a cada banho de ervas, retorno à minha inteireza”, conta.
Mesmo o ritual mais simples é capaz de potencializar as intenções nele depositadas. Portanto, não subestime o poder de uma oração, um mantra, uma bênção. O que vale é a grandeza da entrega.
Por Raphaela de Campos Mello – revista Vida Simples
Jornalista. Precisou de tempo para refrear o racional e se aproximar dos mistérios sutis da existência.