Desde 1970, a ética humana diante dos animais vem sendo debatida por filósofos no meio acadêmico e entre pequenos grupos da sociedade. Nos últimos anos, com o advento da internet e o amplo acesso à informação, a questão chegou a muita gente, e os animais acabaram ganhando aliados. Ao mesmo tempo, empresas de tecnologia começaram a investir em formas de produzir carnes à base de plantas. O desafio agora é: uma carne de qualidade, sem exploração animal e que seja acessível.
Impacto da pecuária no meio ambiente
Somado à causa animal, entrou em pauta também a iminente destruição do meio ambiente, causada, em grande parte, pela pecuária. Com isso, veio a demanda por produtos livres da exploração animal. A pecuária é um péssimo sistema de geração de alimento. Os animais são alimentados durante anos por vegetais e com altos gastos, danos ambientais e sofrimento desnecessário.
“Atualmente, temos uma população mundial passando dos 7 bilhões e com cerca de 820 milhões em situação de fome. Até 2050, nossa população chegará em 9.7 bilhões, e a produção de alimentos precisa aumentar 70%. O maior desafio está na produção de proteína, já que aumentar o número de animais de produção causa impactos no meio ambiente e exige uma grande quantidade de grãos para alimentar esses animais”, analisa Gustavo Guadagnini, diretor-executivo do The Good Food Institute Brasil.
Tecnologia é aliada da produção de produtos sem exploração animal
Diante da atual realidade ameaçadora para os animais e para o planeta, muitas empresas de tecnologia nas áreas da engenharia alimentar e engenharia bioquímica começaram a produzir produtos alimentícios semelhantes aos de origem animal. Esses produtos são livres de exploração animal, além de terem um impacto ambiental muito menor. Tais empresas oferecem alternativas aos produtos de origem animal, como maquiagens sem testes em animais, peles e couros sintéticos, carnes e leites vegetais ou feitos a partir da cultura de células.
“Não se trata mais de um esforço para oferecer alimentos a um nicho de consumidores veganos, e
sim oferecer alimentos com base vegetal para todos os tipos de consumidores, inclusive aqueles que ainda consomem carnes. As empresas de carne estão investindo em tecnologias que vão possibilitar que a gente alimente o mundo do futuro, não há foco em fazer produtos estritamente para veganos”, ressalta Gustavo Guadagnini.
Investimento em sabor e aposta na vida
Alguns produtos são tão parecidos com os de origem animal que nem especialistas podem distingui-los facilmente. Trata-se de uma ótima alternativa para auxiliar as pessoas resistentes às mudanças a fazerem escolhas mais éticas e que causam menos sofrimento. Isso também ajuda a manter as memórias afetivas de quem consumia produtos de origem animal. Além de poupar os animais e redefinir semanticamente alguns conceitos que tínhamos há anos – como é o caso da palavra carne -, a grande
sacada deste novo ramo de negócios é romper com a ineficiência prática de criar animais.
“De acordo com a consultoria AT Kearney, em 2040, o mercado total de carnes valerá USD 1.8 trilhão
(um trilhão e oitocentos bilhões de dólares), sendo que apenas 40% dessa carne será produzida de
forma tradicional (usando animais), e 60% será de proteínas alternativas (carnes vegetais, proteínas
obtidas pela fermentação e carnes cultivadas). Existem variações nesse tipo de previsão, porém está claro que as proteínas alternativas ganharão participação extremamente relevante no total de vendas dos alimentos nas próximas décadas”, conta o diretor-executivo do The Good Food Institute Brasil.
Mais lucro e menos exploração
A produção de alimentos livres de exploração acaba gerando menos gastos por não precisar de grandes áreas, do manejo e cuidado dos animais, por ser livre de antibióticos, além de poluir menos o meio ambiente. Com isso, é bastante possível que as empresas que exploram animais revejam seus conceitos de negócios, caso não queiram ficar para trás. Trata-se de algo que já começa a acontecer e tem sido refletido nas prateleiras dos supermercados, onde já é possível encontrar diversas opções vegetarianas.
Para o consumidor, muitas vezes, essas opções costumam ter um valor elevado no primeiro momento. Mas, como explica Gustavo Guadagnini, isso se deve principalmente a dois fatores: escala e disponibilidade tecnológica. Por isso, é fundamental investir em ciência e tecnologia para reduzir o custo de matérias-primas e ganhar eficiência energética.
“Por exemplo: o GFI financia uma pesquisa que tenta extrair proteína da folha de mandioca, que, hoje em dia, é um produto descartado. Se essa pesquisa der certo, teremos uma nova fonte de proteínas que é extremamente disponível e muito barata. Somam-se centenas de pesquisas sobre todos os tipos de ingredientes, maquinários e afins para, depois de alguns anos, ser possível reduzir custos de forma significativa”, analisa.
Dados animadores para o planeta
Um recente relatório da consultoria global AT Kearney afirma que a maior parte da “carne” produzida em 2040 não virá de animais abatidos, 60% será cultivada em laboratório ou substituída por produtos à base de vegetais com aparência e gosto de carne.
O relatório, chamado em português “Como a carne cultivada e as alternativas à carne rompem com a indústria agroalimentar?”, foi produzido baseado em dados e entrevistas de especialistas de mercado. Cita-se que o crescimento com a preocupação sobre o bem-estar dos animais, com os males da agricultura industrial e o grande impacto ambiental da produção de carne convencional são fatores fundamentais para esta grande mudança.
Segundo o relatório, “44% da produção agrícola global de hoje seriam suficientes para alimentar a maioria dos seres humanos […] uma dieta à base de plantas não apenas forneceria as mesmas calorias, mas também teria o mesmo valor nutricional se as colheitas fossem escolhidas de acordo para ter proteína suficiente. Assim, poderíamos alimentar cerca de duas vezes mais humanos com a colheita global de hoje se não alimentássemos o gado”.
Grandes marcas apostam em opções vegetarianas
Algumas grandes empresas, mesmo as do ramo pecuarista, estão percebendo a demanda e fazendo novos produtos para substituir a carne produzida convencionalmente. Richard Branson, fundador do gigantesco grupo Virgin, é um grande investidor neste novo mercado e prevê que a nova carne, também conhecida como clean meat (carne limpa), irá substituir completamente a carne tradicional em aproximadamente três décadas. O empresário Bill Gates, fundador da Microsoft, é outro que tem investido muito dinheiro nesse negócio.
Lanchonetes com opções veganas
Vale lembrar que grandes redes de lanchonetes também estão adicionando produtos vegetarianos
e “veganos“ em seus cardápios, como Burger King, Domino’s, Starbucks, entre diversas outras, reforçando a necessidade de produtos sem animais. Outra informação animadora é que os leites à base de plantas, como o de soja e o de amêndoas, já têm uma fatia de mercado de 10% nos EUA.
Produção de produtos à base de plantas
Diversos empreendimentos têm levado a sério a proposta de desenvolver produtos à base de plantas (em inglês, plant-based), que são sinônimos de estritamente vegetariano. Estes produtos de origem vegetal estão em crescimento por novas filosofias e hábitos de consumo, com os quais se busca reduzir ou eliminar o uso de produtos de origem animal.
As motivações que estão criando e fortalecendo esta indústria podem ser diversas: por razões éticas, como acabar com a crueldade contra os animais, objetivos pessoais, como melhorar a saúde por meio da dieta ou por crenças espirituais.
Alternativas saborosas e saudáveis podem mudar o consumo
Nutricionistas do mundo inteiro dizem que é totalmente possível ter uma vida saudável sem o consumo de carne de origem animal. Basta seguir uma dieta variada com legumes, verduras, frutas e leguminosas e, em caso de necessidade, fazer a reposição de alguma vitamina, como a B12.
Ou seja, muitas pessoas comem carne por prazer, não pela necessidade. Talvez esta nova “culinária” traga uma alternativa tão saborosa que pode, de alguma forma, fazê-las repensar esses hábitos que exploram, matam os animais e destroem o planeta.
“Alimentação é a coisa mais cultural que existe, carrega nossos hábitos, receitas de família, perfil demográfico e tantas outras coisas. Dessa forma, eu ouso dizer que a comida do futuro será muito
parecida com a comida do passado, pois as pessoas querem manter seus hábitos e tradições alimentares. O que deve mudar – e muito – é a tecnologia usada para produzir esses alimentos que as pessoas querem consumir”, explica Gustavo Guadagnini.
Importância das mudanças no sistema de alimentação
Recentemente, o Fórum Econômico Mundial reforçou a necessidade da mudança no sistema alimentar e lançou um relatório reconhecendo que as proteínas “alternativas” devem ter um impacto favorável no mercado.
“Vale a pena notar que os novos métodos de biotecnologia vão perturbar não apenas a indústria da carne, mas toda a indústria alimentícia, já que produtos como leite, clara de ovo, gelatina e peixe podem ser criados com tecnologia semelhante. Portanto, para ter sucesso no mercado de carne em 2030 e além, é necessário um investimento antecipado, já que cadeias de suprimento, instalações de produção e canais de distribuição devem ser construídos e adaptados às novas exigências do mercado”, cita o relatório.
Texto originalmente publicado na Revista Veganismos (Edição 03).
Por Matilde Freitas e Julio Cesar Prava