Sempre que visito minha mãe em Santos, no litoral paulista, passo um tempinho observando os navios cargueiros no porto e seus contêineres desbotados. Fico imaginando o que cada um deles guarda: brinquedos baratos de plástico, bijuterias, roupas e acessórios de moda que ficam “velhos” a cada estação, equipamentos eletrônicos feitos para durar pouco, bugigangas inúteis para todas as idades, cosméticos que viram resíduos tóxicos nas águas. A lista beira o infinito.
Um pouco desanimada, chego a pensar que muitas dessas coisas nem deveriam ser produzidas no planeta – muito menos consumindo combustíveis fósseis e, menos ainda, com trabalho infantil ou análogo à escravidão. Seríamos mais felizes, e livres até, sem essa roda do consumismo que, de tão corriqueira, nos habituou a achar “normal” uma empresa produzir danos às pessoas e à Terra e ainda lucrar com isso. Quer um exemplo?
Impacto do agronegócio
Aqui no Brasil, o agronegócio tem relação direta com o desmatamento na Amazônia e no Cerrado. Cerca de 60% das áreas que sofrem perdas florestais nesses biomas viram pasto, em um modelo de negócio que não para em pé: para cada R$ 1 milhão de receita da pecuária bovina, há um custo de R$ 22 milhões em impactos ambientais não remediados pelos produtores, segundo dados do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável e Agência Alemã para a Cooperação Internacional.
De uns tempos para cá, no entanto, essa lógica bruta do capitalismo tem sido questionada entre os próprios executivos e investidores do “mercado”. Não tanto pelos danos gerados (que parecem ainda não afetar o sono desse pessoal), mas pelas incertezas quanto à sobrevivência dos negócios em um horizonte devastado por problemas que as próprias empresas ajudaram a criar; entre eles, os dois maiores desafios atuais: a desigualdade social e a crise climática.
Por quanto tempo mais será possível explorar o planeta e as pessoas? Onde isso vai nos levar? Desacelerar os danos para produzir e poluir por mais tempo seria suficiente para evitar o colapso? Respire um instante. Já parou para pensar como seria a Terra se, antes do lucro, o propósito das empresas fosse tornar o mundo um lugar melhor?
Sonhar é parte da transformação
Pode parecer utopia (das boas!), mas já há quem aposte nisso como único caminho possível. No livro Impacto Positivo: como empresas corajosas prosperam dando mais do que tiram (Sextante), o ex-CEO da Unilever, Paul Polman, em parceria com Andrew Winston, expoente da sustentabilidade corporativa, confrontam a ideia de que a única função das empresas é obter lucro. Ao longo da publicação, eles mostram que as organizações geradoras de impactos positivos são chave importante para salvar o mundo. Em resumo, a sugestão deles é algo como “cure o mundo primeiro, e então você vai deixar seus investidores satisfeitos”.
Veja só: mesmo com um ousado plano de sustentabilidade, que já rendeu mudanças internas graduais e profundas, a multinacional conseguiu aumentar o retorno de seus acionistas em 300%. “O novo objetivo para os negócios é lucrar e crescer resolvendo – e não criando – problemas no mundo. Isso por si só é uma mudança fundamental em um sistema baseado na obsessão pelo valor de curto prazo para o acionista, critério predominante nos últimos 50 anos”, escreve Polman.
O poder da autorresponsabilidade
Ainda que esse discurso seja algo incipiente, realmente vivemos outros e novos tempos. E o que os autores defendem é que as empresas precisam se responsabilizar pelos seus atos no planeta (parece tão óbvio, não?), buscar um propósito honesto para guiá-las até resultados que equilibrem sucesso e riqueza, de um lado, e justiça e equidade, do outro. “Não devemos fingir que todos que estão nos negócios se importam com a condição do mundo. Mas a maioria dos CEOs é humana. Eles têm filhos e netos que questionam suas ações… e eles podem se importar”, escrevem.
Nesse sentido, (re)construir uma organização de impacto positivo não é algo que acontece da noite para o dia. Mas precisamos iniciar essa jornada. “Ser uma empresa relevante hoje em dia é enriquecer o mundo”, afirmam os autores. Já temos exemplos de CNPJs que nascem para fazer a diferença, que veem a prosperidade como consequência do bom trabalho. É o caso da fintech brasileira Impact Bank, criada em outubro de 2020 por um grupo de ativistas. Eles dizem assim: lucro é quando todos ganham, quando os territórios e a sociedade evoluem juntos. “Se alguém ou o planeta sai no prejuízo, ninguém lucra com isso”, defende o cofundador e CEO Gabriel Ribenboim.
Seja o exemplo
Com 15 mil clientes e 35 mil em fila de espera para abertura da nova conta digital, em dois anos o Impact Bank já ultrapassou R$ 16 milhões alavancados para iniciativas (na Amazônia, principalmente) que colaboram para um futuro mais justo e regenerativo, por meio do Fundo de Transformação. “Nosso objetivo é acelerar a transição para uma sociedade regenerativa atuando mais diretamente com os agentes transformadores, que são as ONGs e os negócios de impacto”, conta Gabriel.
Alguém poderia questionar: mas dá mesmo para lucrar com isso? “Dá e só vai dar para lucrar se for assim”, reforça Gabriel. E você, eu e cada um de nós nessa história? Somos todos atores da transformação. Nossas escolhas diárias patrocinam e mantêm o mundo que está aí. Se queremos mudá-lo, também é nossa tarefa rever algumas coisas, das pequenas às grandes escolhas. Talvez, assim como eu, quando você enxergar algum cargueiro desembocando em terra firme, questione-se: como isso faz a Terra um lugar melhor?
Por Giuliana Capello – revista Vida Simples