Uma blusa preta de florzinhas em um cabide plástico colocada para pegar vento, presa na cerca do quintal lateral da casa. Vento para lá, vento para cá. Um senhor aparece, recolhe a blusa. Próxima cena: a esposa, que aparenta estar na faixa dos 80 anos, como ele, arruma uma bolsa de viagem simples, uma sacola branca de vinil. A cena segue silenciosa para uma mesa de café da manhã singela, em uma sala pequena.
Comem pão, tomam café. Contabilizo a sequência por curiosidade e me deparo com mais de três minutos sem um único diálogo. E isso é muito tempo para uma película. A história acima é do casal Nati e Augusto. Eles moram no interior da Espanha. Nessa manhã em especial, estavam se preparando para uma viagem de dois dias a uma praia no litoral do país.
Seguiram em um ônibus de excursão. Foram ver o mar, e essa é uma cena de comovente delicadeza, quando Augusto entra na água e convida a esposa a sentir as cócegas provocadas pelas ondas. “Pode vir, eu te seguro, não é perigoso”. Depois da diversão no mar, o casal volta para o quarto do hotel. Comem em silêncio. Arrumam as mesmas sacolas. Deitam na cama. Descansam. Pegam duas cadeiras, colocam na estreita varanda do quarto e ficam sentados à espera do horário de volta para casa. Pausa. Silêncio. E a rotina sem filtros.
O amor nas pequenas coisas do dia a dia
A dupla Nati e Augusto é um dos casais que tiveram seu dia a dia registrado no belo documentário Meu Amor, uma produção da Netflix, dirigida pelo coreano Jin Mo-young. Em formato de série, cada episódio – são seis – narra o cotidiano de um casal em diferentes países, inclusive o de duas brasileiras do Rio de Janeiro. Todos estão juntos há mais de quatro décadas. Sem saudosismo, sem se prender no clichê “lembra quando a gente se conheceu?”, Meu Amor conduz para as ações práticas de todo dia, mas que traduzem o afeto que mantém as pessoas juntas por muitos anos.
Atraída pelo título, assisti à série há algumas semanas. No início, fiquei incomodada. Não sabia exatamente por quê. O ponto alto foram essas sequências sem fim que narrei acima. Nada acontecia, era tudo comum. Um cotidiano banal. Foi quando finalmente percebi: a vida a dois, afinal, é isso. Acontecimentos em sequência, sem nada extraordinário. Apenas o dia a dia, do jeito que se apresenta: com o café da manhã colocado na mesa da sala pequena, as migalhas do pão, a louça suja na pia.
A reportagem a seguir é sobre isso: como o amor a dois está presente no nosso cotidiano, nas pequenices. Será que estamos sabendo apreciá-lo ou vivendo de forma aborrecida, esperando borboletas no estômago em loopings que nunca se esgotam?
O que cabe em uma relação
Cresci acreditando em “juntos para sempre”. Achei que havia tido muita sorte quando casei aos 24, com o namorado por quem me apaixonei profundamente aos 17. O casamento acabou antes que completássemos 30. Com a separação, tive que enterrar muita coisa: os filhos que não tivemos, os sonhos que não realizamos. E percebi, da pior forma, que talvez não existisse um amor para sempre e que nenhuma relação vinha com contrato garantindo as bodas de ouro.
Culpei a história, a nossa cultura, a sociedade. Em parte, estava certa. O romantismo, como movimento histórico, não ajudou em nada. Ele foi um dos responsáveis pela ideia do par perfeito, do amor que completa sem deixar brechas para a tristeza. Arrebatamento. “Buscar algo salvador no amor é estar fadado à frustração. Nos relacionamos com o imperfeito, com alguém com falhas”, conta a psicóloga Desirée Cassado, que estuda o tema há 15 anos e dá aulas sobre isso na The School of Life.
Conhecer a própria personalidade é fundamental
Apesar de cheios de falhas, quando conhecemos alguém, tentamos conquistá-lo mostrando apenas o nosso melhor. Em alguns momentos, chegamos a fazer um esforço hercúleo para nos aproximar da versão ideal de parceira que o outro gostaria de ter ao lado. Escrevendo desse jeito, parece até loucura, só que fazemos exatamente assim.
Sempre gostei do filme Noiva em Fuga (1999), com a atriz Julia Roberts no papel principal. Nele, a personagem foge repetidamente do altar. Pânico do envolvimento. Até perceber que a questão nunca foi sobre o outro, mas sobre ela mesma.
Ela se dá conta de que, em todas as relações, tentava se adequar ao par e usa como exemplo um simples ovo. Não sabia como gostava porque, em cada namoro, comia de acordo com o paladar daquele que a acompanhava. Frito, com gema mole, dura, pochê, omelete. Como? É essa descoberta que ela entende ser necessária. Saber de si.
Encontrar valor nas ações diárias fortalece os relacionamentos
Saber o que faz sentido ou não para si. Esse é o lema do ano para o escritor Lucão. Depois de duas relações – e separações –, ele deseja agora passar por um período de descobertas. Lucão é poeta, cronista, romancista. Escreve lindamente sobre o amor. E, talvez, por viver da palavra, não tenha receio de experimentar a vida, transitar pelas diversas possibilidades.
“Amor tem a ver com mistério”, diz. “Tenho um irmão gêmeo que conta tudo o que aconteceu com ele desde a última vez em que nos encontramos: o que tem feito no trabalho, no mestrado. Mas queria saber das bobeirinhas, de como está seu coração”.
O mistério é sobre o que não revelamos o tempo todo, Lucão? “O encantamento não está em relatar tudo o que se faz. É um gesto de amor encontrar o extraordinário na banalidade. Precisa afeto para fazer isso. Com raiva, você não faz”, completa.
Encontrar o extraordinário na banalidade é o que se exercita na crônica. É sobre a beleza escondida nas miudezas da rotina, nas conversas, nos pequenos gestos. A crônica “Recordação”, do escritor Antônio Prata, é um ótimo exemplo disso. Nela, Prata narra um acontecimento comum: a corrida com um taxista e o diálogo que tiveram.
O motorista conta ao escritor que, naquele dia, ele e a esposa fariam 25 anos de casados (se ela não tivesse morrido). E o que mais sentia falta era não poder lembrar dela como era no dia a dia. “Sabe o jeito que eu mais me lembro dela? De avental. Só que toda vez que tinha almoço lá em casa, festa e alguém aparecia com uma câmera na cozinha, ela tirava correndo o avental, ia arrumar o cabelo, até ficar de um jeito que não era ela”, conta o motorista.
Amar é dar o que não se tem
Sinto que entender o que se esconde neste dia a dia é saber viver o amor com mais plenitude. Será? A verdade é que, quando estamos numa relação, a rotina nos parece tão maçante, cansativa. “Saber conviver com as miudezas não é algo confortável para a gente”, explica a psicoterapeuta Ana Suy, autora do best-seller A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão (Planeta).
“Temos uma necessidade de se preencher do outro. Tem uma frase famosa do Lacan (Jacques Lacan, psicanalista francês) que diz: Amar é dar o que não se tem. Isso é oferecer o nada ao outro, poder suportá-lo quando não tem nada naquele momento”, comenta. E segue: “São as brechas de poder suportar o silêncio, a solidão do outro. A gente não está ali para preencher. O amor é sobretudo encontrar pessoas no caminho para dividir isso: nossos silêncios, momentos de tédio e de solidão também”.
Mudanças fazem parte do amor
Aprendi a me bastar nos intervalos entre os namoros e os casamentos. Me fartei de mim e percebi que não sou boa companhia todos os dias – um aprendizado necessário para todos nós. Comento essa descoberta com Ana Suy e também como a experiência de ter filhos me ensinou – e ainda ensina – sobre o amor.
Passei anos desejando ser mãe e, quando isso finalmente aconteceu, vieram dois bebês ao mesmo tempo. Sem manual de instruções, as relações amorosas parecem ser sempre assim. Meus filhos escancararam o meu melhor, mas também o pior. Minha compaixão, afeto, doçura, compreensão e minha raiva, intolerância, impaciência. Tudo no mesmo pacote chamado amor.
Sim, no amor cabe tudo. E precisa caber. Até mesmo a liberdade precisa se acomodar nessa equação. “Criamos nossos filhos para o mundo, a separação é uma perspectiva. Mas não conseguimos perceber isso na relação a dois”, coloca Ana Suy. Não existe contrato que garanta uma vida plena, sem sobressaltos. “O amor não fica ileso ao tempo. É um se reencontrar com o outro em vários momentos da vida”, diz.
Aprender a cuidar um do outro é essencial
Fico pensando nesse amor que navega sabendo o momento em que as margens são mais largas e quando se tornam estreitas. Penso nos meus pais, que estão juntos há quase seis décadas. Não sei se tiveram a relação mais feliz da vida. Porém, meu pai ainda fica com os olhos marejados quando se refere à minha mãe. Sempre quis ter um casamento assim. Ileso ao tempo. Mas também quero ser eu mesma.
Tenho consciência do que minha mãe deixou para trás de modo a estar no papel de boa esposa e mãe de três filhos. Ela queria trabalhar fora, ser independente, pintar, conhecer o mundo. Contudo, seu roteiro se restringiu ao apartamento de 100 metros quadrados. O mais bonito que percebo hoje – já fui crítica feroz do casamento deles – é o quanto conseguem vivenciar a rotina sem sobressaltos. E a forma bonita como cuidam um do outro. Meu pai, aos 86, anda com dificuldade e ouve muito mal. É ela quem o faz levantar todo dia, o chama para a vida.
Compatibilidade é uma conquista diária
Na série Meu Amor, há a história do casal japonês Kinuko e Haruhei. Eles se conheceram numa clínica para pessoas com hanseníase. Haruhei foi para uma dessas clínicas ainda garoto, onde ficou recluso por anos. Adulto, apresentava algumas deformações, consequência da doença. Foi dessa forma, imperfeito, que conheceu Kinuko, quando ela trabalhava na clínica onde residia.
A jovem se encantou pelo rapaz, pelo sorriso, pelo que enxergava além das sequelas da doença. Estão juntos até hoje. Parece algo fora da curva, um enredo ao qual poucos de nós se ajustaria. Na conversa que tive com Desirée Cassado, ela fez uma afirmação que se encaixa para o casal japonês e para meus pais.
“A compatibilidade numa relação não é um presente, mas uma conquista diária, de anos de investimento, na qual é preciso abrir espaço para as vulnerabilidades, saber quais sinais o outro dá para dizer que não está bem ou gostando de alguma coisa. E a aprender a cuidar”. Kinuko cuida de Haruhei em uma relação que abre espaço para a fragilidade e para o acolhimento.
Amar é expor as suas fragilidades
Nestas linhas finais, preciso contar que meu interesse em escrever esta reportagem está relacionado a fatos recentes da minha vida. Um amor que decidiu surgir aos 50 e praticamente um ano depois de publicar um texto por aqui sobre a minha separação e a depressão. Dessa paixão, nasceu um livro: “Amar é Ridículo”. São poesias e crônicas poéticas sobre um amor cultivado no cotidiano, nas tardes sentados no sofá, na ida ao supermercado.
Passei por três relações e demorei para entender que, em todas, um medo frequente me acompanhava: o de me mostrar inteira, com tudo que me compõe, e uma necessidade de ocupar os espaços vazios, como se precisassem ser preenchidos. Conforme escrevo no início do livro, “adoraria que alguém tivesse me contado que amar é expor suas fragilidades e, de volta, ter quem as acolha”.
Amor é uma construção
Estou agora aprendendo a construir o amor. Olhando com mais apreciação para o outro do jeito que ele é. Deixando ser vista do jeito que sou. Decidimos não ter um contrato que diga até quando vamos ficar juntos, tampouco que pertencemos um ao outro. Saltamos em direção a uma história que desejamos que seja para sempre. Não sabemos se será. Apenas gostamos de acreditar, porque isso nos enche de esperança.
Juntos, estamos aprendendo a chorar por mágoas antigas ou as recém-adquiridas, a desmoronar afogados nas inseguranças e medos da vida adulta, a tropeçar, a errar e a conversar sem julgamentos sobre nossos deslizes. A dançar na sala vazia, de rosto colado, ouvindo as músicas que embalaram a nossa adolescência dos anos 1980. Acordar dentro do abraço do outro. A fazer o café juntos. O dele com quatro colheres pequenas de açúcar. O meu, com três. Pão tostado. Manteiga. Migalhas na mesa. Louça suja na pia. Sempre do mesmo jeito. Às vezes, entre palavras. Às vezes, no silêncio. Do amor.
Texto originalmente publicado na Revista Vida Simples (Edição 248)
Por Ana Holanda