Geninho Goes estava com tudo pronto para desembarcar na Índia dentro de alguns meses. A mistura de caos e paz pela qual o país é conhecido o atraía. Até que um telefonema alterou sua rota. Do outro lado da linha, a assistente social contava que os quatro irmãos de Maria, de 15 anos, filha adotada por ele e seu marido há oito, esperavam por adoção. “Ela queria a indicação de alguém que pudesse se interessar. Olhei para o Duda e não tive dúvidas. Respondi: nós vamos adotá-los”, conta.
Depois de muito choro e emoção compartilhados pelo casal, a filha e a assistente social, uma nova etapa na vida da família começou. “Ali, eu entendi que não precisava mais ir à Índia porque a Índia veio até mim”, reflete Geninho. “A experiência de ser pai é tão transformadora que não se compara aos ensinamentos de nenhum livro ou guru. Filhos são grandes mestres para quem quer aprender. Eles te colocam em contato com você.”
Geninho e Eduardo Domingos Silva, o Duda, relatam uma intensa descoberta interior na criação das cinco crianças. Ambos perderam os pais na infância e se veem ressignificando essa ausência ao apresentarem o amor paterno aos filhos, que sofreram com a violência e o abandono da família biológica. “É uma cura para eles e para nós”, conclui Duda.
A principal motivação do casal pela adoção foi perceber que eles tinham amor de sobra e que era preciso dar vazão a esse sentimento. “E não se trata de romantismo: o amor pode ser muito desafiador. É aceitar o outro, colocar-se no lugar dele”, afirma Geninho, lembrando-se das provas que os filhos propõem. Por isso, além de amor e vontade, ele vê a necessidade de acompanhamento psicológico, maturidade emocional, tempo e espaço para se dedicar a essa criação, repleta de desafios, recompensas e transformações.
Desmanchando preconceitos
A adoção de grupos de irmãos, crianças maiores, negras, com deficiência ou problemas de saúde é, muitas vezes, vista como atípica. Isso porque a procura se concentra em até dois bebês, geralmente brancos e saudáveis. Mas histórias como a de Geninho e Duda demonstram a ampliação desse espectro.
Segundo o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, 9,6% das adoções eram de crianças com problemas de saúde em 2021, contra 2,3% dois anos antes. Já a taxa de adoção de crianças com deficiências passou de 0,6% a 3% no período.
O curso preparatório, destinado a quem decide adotar, tem parte nesse aumento. Jeniffer Aparecida de Oliveira e Julio Cesar de Oliveira são prova disso. Após 17 anos de casados e sem conseguir engravidar, eles optaram pela adoção ao entenderem que não era preciso gestar uma criança para serem pais. “Procurávamos duas crianças saudáveis de até três anos. Não que isso seja errado, mas, no nosso caso, era puro preconceito”, diz ela.
Em seu íntimo, eles imaginavam a casa cheia de crianças, mas a preocupação financeira era grande. A partir do curso e do contato com outras famílias adotantes, o impossível foi se mostrando mais real e eles ampliaram o perfil de adoção. Até que adotaram cinco irmãos, de 13 a 2 anos. Com ajuda de amigos, puderam aumentar a casa e equipá-la para receber os filhos.
Descobrir-se no outro
Na escola, Juan, de 12 anos, apresentava especificidades no aprendizado. Após investigações, ele foi diagnosticado com autismo e altas habilidades. “Eu o achava muito parecido comigo em diversos aspectos”, diz Jeniffer, que decidiu estender a investigação a todos os membros da família. Foi quando ela e o marido descobriram que também eram autistas. Além disso, Julio foi diagnosticado com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), e ela, com altas habilidades.
“No início, escolhemos crianças saudáveis por medo e preconceito. No final, descobrimos que nós mesmos somos autistas”, reflete. “Tudo começou a se encaixar. Foi libertador”, afirma Jeniffer. Para ela, o conhecimento sobre a adoção atípica é essencial para abrir o coração e a mente sobre o tema. “O amor vai muito além de diagnóstico. Eu não trocaria nenhum dos meus filhos por nada nesse mundo”, diz.
A mãe de cinco ressalta a importância do suporte médico e psicológico no processo. “A adoção tem muitos desafios, principalmente no começo. Precisamos de muita ajuda da equipe técnica. Sem eles, não teria dado certo”, diz. O apoio de psicólogos, psiquiatras e neurologistas segue acontecendo, nas redes pública e privada. “Os desafios que enfrentamos juntos, como família, nos fortalecem ainda mais”, celebra Jennifer.
Transformando o amor em ação
Filha via adoção, a educadora Marianna Muradas é co-idealizadora da Formação Doulas de Adoção, projeto que dá apoio emocional a famílias durante a adoção, inclusive a atípica. Ela lembra que o diagnóstico de uma criança pode acontecer tanto em uma família biológica quanto em uma formada via adoção. “Ambas vão ter de lidar com o luto do filho idealizado. Fornecemos ferramentas e informações para que a doula os acolha”, explica.
O ponto de partida dos pretendentes é questionar se possuem reserva afetiva, material e de tempo para cuidar das crianças, de forma que elas possam desenvolver suas potências sem o risco de um novo abandono. “Adoção não é caridade, é via de parentalidade”, frisa Marianna.
Quando desejo, disponibilidade e compromisso coincidem, as experiências de adoção atípica têm o potencial de trazer à tona a grandeza do amor que sentimos e a capacidade de transformá-lo em ação. E isso vai muito além do DNA.
Por Martina Medina – revista Vida Simples
É jornalista e não considera ter filhos no momento, mas essas histórias a convidaram a revisitar o tema no futuro.