Tenho, no meu quarto, uma estante cheia de livros. Alguns são novos, outros bem mais antigos e, quando a campainha toca com algum pacotinho diferente, minha mãe já diz: “aposto que é mais livro”. Meus amigos sabem do meu gosto e, por isso, também contribuem com ele: me presenteiam com exemplares raros, como uma coleção de romances franceses com as páginas já amareladas. E uma coletânea de cartas do meu escritor favorito, que não se encontra mais para comprar nem nesses sites de raridades.
Sempre gostei de ler assim, no papel, e já tentei me adaptar diversas vezes às telas, mas sem sucesso. Nasci no fim da década de 1980, quando nem se pensava em internet ou computadores, e passei por toda a transição dos analógicos para os digitais, aprendendo na marra e com todos os desafios que vêm junto das novidades. Mas não consigo me desvincular de alguns pequenos prazeres que só os analógicos me proporcionam: o cheirinho e a textura das páginas de um livro físico, as fotografias impressas e a escrita em papel e caneta.
As lembranças passadas são uma forma de liberar endorfina
Penso que alguns objetos têm o poder de devolver para nós um pouco do que a gente é. E, por mais que essa magia dos analógicos pareça ter desaparecido diante de tecnologias e facilidades, alguns deles ainda resistem dentro de nós, contando parte da nossa história. Outros têm voltado e ganhado cada vez mais espaço nos dias de hoje, como os vinis, as câmeras fotográficas com filme e as instantâneas, que revelam as imagens na hora, feito mágica. Afinal, por que esse fascínio ainda existe?
Conversei com a psicóloga Naara Amim para descobrir por que esses objetos continuam sendo tão especiais, nos despertando as mais variadas emoções. Ela me explicou que é superimportante manter no presente conexões que nos remetem a boas lembranças. “Alguns objetos do passado podem trazer
essas sensações e nos aproximar mais de nós mesmos, das nossas histórias, nossas origens e até de algumas referências familiares”, diz.
Além disso, essa nostalgia contribui para o nosso corpo liberar endorfina, um hormônio presente em nosso cérebro, capaz de inibir a irritação e o estresse. Você sabia disso? A sensação é bem parecida com aquela felicidade que a gente sente a ponto de diminuir a velocidade de tudo ao nosso redor.
Naara diz também que existem várias maneiras de liberar a endorfina. Escutar uma música ou manter contato com objetos e pessoas que também trazem boas lembranças são só alguns exemplos. Outro ponto positivo dos analógicos é o nosso próprio desenvolvimento motor. Eles estimulam o toque, o contato físico e a interação, diferentemente dos recursos digitais que, na maioria das vezes, nos limitam a sentir tudo só com a pontinha dos dedos.
Conexões de afeto
Mas, de tudo isso, eu gosto mesmo é do lado afetuoso, presente no que a gente chama de conexões reais. Vivemos em uma época em que tudo é veloz e descartável. Veja só as fotografias: podemos tirar várias, de diversos ângulos, com uma porção de efeitos que mudam cor, afinam nosso rosto e até distorcem um ambiente.
“Quem viveu a época das câmeras analógicas sabe o quanto é importante prestar atenção e aproveitar cada instante. Porque os filmes não permitem que a gente tire várias fotos e escolha qual imagem a gente quer. É preciso ter prazo de sentir”, observa Antônio Barbosa.
Ele passou boa parte da vida revelando fotografias em laboratórios escuros e depois, já mais velho, conserta câmeras fotográficas antigas. Um trabalho que, segundo ele, diminuiu bastante nos anos 2000, mas voltou a crescer nos últimos tempos. “Muitos jovens me procuram com equipamentos herdados de algum familiar ou até mesmo comprados nessas lojas de antiguidades. Outro dia consertei uma Polaroid 600, dessas bem antigas. Fiquei emocionado”, conta.
Na busca por conexões verdadeiras, tendemos a nos afeiçoar àquilo que desperta nossas emoções e nos proporciona experiências mais intensas, marcantes e significativas. As tecnologias até prometem mais
agilidade, eficiência e controle em nossas ações. E não podemos negar que elas são essenciais em nosso dia a dia. Mas, ao mesmo tempo, elas tiram da gente essa delicadeza dos sentidos e do “estar presente” em todas as nossas relações. “O que pode ser fascinante num primeiro momento também pode gerar como consequência relações descartáveis, superficiais e tóxicas, assunto muito bem refletido no livro Amor Líquido, de Zygmunt Bauman”, pontua Naara.
Colecionando memórias
Essas relações, um tanto desgastadas pela falta de contato, se desfazem com mais facilidade porque não aprendemos a importância do cultivo cuidadoso e diário. Nos acostumamos a reagir entre urgências e a descartar facilmente o que nos desagrada.
“A minha leitura é que as gerações mais jovens têm uma dependência impressionante, e até preocupante, da tecnologia, de estar conectado 24 horas por dia e, principalmente, das suas relações com as redes sociais”, diz o historiador Bruno Vinícius de Morais. Ele é do tempo das locadoras de filmes, na rua. Em casa, guarda uma coleção com quase 3 mil CDs, que ouve em um discman cinza, desses bem antigos. A relação dele com os CDs começou em 2001, quando comprou um acústico da cantora Cássia Eller com o dinheiro do primeiro salário.
Depois, a paixão por esses disquinhos foi só crescendo, a ponto de fazerem parte do mestrado e do doutorado do Bruno: ele analisou não só as canções, mas os encartes e as mensagens das capas. “Honestamente, sinto falta de poucas coisas porque ainda tenho acesso a tudo que eu fazia antes, como as estações de rádio”, observou. Desfrutar do que a tecnologia nos oferece hoje pode ser um recurso incrível, mas que não precisa deixar para trás a graça que um mundo analógico também tem a nos mostrar. Podemos valorizar a pausa, a presença e até outra velocidade de tempo. Agora me conta: qual pedacinho de passado faz parte do seu caminho até hoje?
Por Débora Gomes – Revista Vida Simples
Não se dá muito bem com tecnologias e não se adaptou às chamadas de vídeo. Às vezes, ela acha que nasceu na época errada.