Aceitar os pontos da nossa história ajuda a nos reconciliar com a vida

Aceitar os pontos da nossa história ajuda a nos reconciliar com a vida
Não aceitar a si priva as pessoas de viverem novas histórias (Imagem: GoodStudio | Shutterstock)

Querido leitor, poderia começar este texto pelas bordas, amaciando o trajeto até o centro da questão. Porém, como a vida é uma bolha de sabão e prezamos cada segundo dessa travessia, optei pela objetividade, escancarando já, agora, bem aqui, a pergunta que pode mudar tudo para melhor: quanto tempo do nosso sagrado existir escorre enquanto relutamos em aceitar o que nos aconteceu?

Os fatos que nos cortaram, as circunstâncias avessas ao que desejávamos, tudo aquilo que simplesmente não aconteceu ou que não pudemos ser. Há muitos jeitos de a gente desgostar do caminho que é o nosso e, por rejeitá-lo, passar anos cavando uma cratera no peito. Não é mesmo?

Pode reparar. Quem não aceita quem é, e a história que lhe coube viver, está em guerra permanente consigo e com o mundo. Emaranhado na lamúria. Esgotado de tanto esbravejar. Ou amuado, sem enxergar possibilidades. De costas para novos enredos.

Aceitação liberta o ser dos incômodos

Falando assim, é fácil concluir que não deveríamos nos demorar nesse campo de batalha. Passaríamos nele o tempo necessário para assimilarmos os eventos, nos reorganizarmos e, pronto, estourarmos a porta de saída. No entanto, como é custoso alcançar a verdadeira aceitação. Às vezes, sequer sabemos qual seria o primeiro aceno na direção dela. Mas não tem problema. A gente descobre.

“As pessoas costumam achar que aceitar é concordar, que tudo bem ter acontecido algo ruim ou extremamente difícil. No entanto, aceitar é apenas reconhecer a ocorrência de um fato ou algo que não foi como a gente queria”, esclarece Cristiane Marino, médica, psicoterapeuta e fundadora do Círculo do Saber. Segundo ela, esse é o primeiro passo para que possamos elaborar o que incomoda e nos reconstituir. “O cuidado nasce da aceitação. Enquanto eu não aceito, eu não estou cuidando”, complementa a especialista.

Negação adia a superação

Ah, a mente e seus truques. Em meio às várias defesas inconscientes para nos proteger da dor, existe a fantasia de que, se não aceitamos algo, é como se aquilo não tivesse acontecido e, consequentemente, nos afetado. Assim, afastamos as agulhadas de uma realidade dolorida. Recusa que só faz adiar a superação do que nos corrói por dentro. Mas a vida também providencia retomadas, como descobriu Mônica Sanches. Ela perdeu a mãe quando tinha 11 anos.

Foram cinco anos de luta contra o câncer de mama até a partida. Na época, instintivamente ela recrutou sua valentia e continuou crescendo. Brava menina. Tentava ser forte enquanto desviava dos olhares de pena ao redor. Apenas recentemente conseguiu encarar essa perda. “Hoje, tenho a percepção de que passei muito tempo na negação e, então, busco minha mãe na vida, na alegria que era dela e nos traços que herdei, e não a associo apenas à morte. Assim a tristeza não se esparrama tanto dentro de mim”, ela diz.

Adulta, mãe de duas meninas, Mônica compreende que as reverberações da perda materna em sua biografia foram tremendas. Em seu processo de aceitação, ela criou o projeto Casa Ciclo, dedicado a celebrar a menarca das garotas. “Aos 11 anos, vivi minha primeira lua, um marco que coincidiu com a despedida da minha mãe. Por isso, quero honrar a menarca de um jeito diferente de como foi a minha, o que me ajuda a aceitar minha própria história”, justifica.

Força é aliada da vulnerabilidade

Fazer-se de forte frente às desventuras da vida é uma coisa, acessar a força real que nos habita é outra. Mas só atentaremos para isso se dermos voz à nossa vulnerabilidade. “Para aceitar, a gente precisa abrir mão da fantasia de onipotência que a nossa sociedade incentiva, afirmando que tudo depende da nossa vontade, do nosso esforço, quando há inúmeros fatores interferindo em nossas vidas; a maioria deles, fora do nosso controle”, enfatiza Cristiane Marino.

O contrapeso para essa visão distorcida seria recordarmos nossa condição humana; ou seja, darmos abrigo a nossas falhas, limites e dificuldades com humildade para que a gente se acolha e desempaque. Aliás, a crença heroica no “tudo posso” dificulta que a gente aceite as coisas como elas são, pois fica parecendo que esse ato é sinônimo de comodismo, de resignação, de passividade, quando ele é justamente o oposto.

“Para aceitar algo, é preciso trabalhar muito. Só que é um trabalho que nos move no sentido da criatividade e da cura, enquanto a não aceitação nos faz dar murro em ponta de faca, pulverizando ou estagnando a nossa energia”, explica a psicoterapeuta.

Ilustração de uma mulher em formato de coração se abraçando
Autoaceitação torna as pessoas mais realizadas (Imagem: Olga Strel | Shutterstock)

Aceitar para evoluir

Com o propósito de afirmar a importância da aceitação em nossas trajetórias, nasceu o movimento Gente de Verdade, criado pela facilitadora Jacqueline Pereira. Por meio de mentorias, palestras e meditações guiadas, ela encoraja as pessoas a se aceitarem da maneira como são hoje, pois entende que esse é o ponto de partida de uma profunda transformação.

Ela mesma admite que se negou e se violentou por muito tempo e, por isso, quer ajudar mais pessoas a se libertarem do ideal de perfeição que tanto nos maltrata e que, no fim das contas, é insustentável, com sua miríade de exigências, padrões, comparações e opressões.

“Aceitar o nosso inteiro, cada parte nossa, como um movimento evolutivo, faz de nós seres realizados, muito em paz, uma vez que nos libertamos da necessidade de agradar aos outros e do medo da rejeição, que nos torna hiper-reativos, melindráveis e negativos”, ela explica. Dessa perspectiva, o exercício da aceitação se revela uma jornada espiritual. “Ao se aceitar, você aceita o próximo, aceita a vida e começa a perceber que você não é um erro, e sim um ser divino, perfeito em sua imperfeição”, define Jacqueline.

Quem abdica da autorrejeição, ela observa, tem um corpo mais relaxado, porém ativo, porque está pronto para se atirar na vida ou receber o que vier; uma mente que valida o que já foi trilhado, que considera o crescimento, o aprendizado e o significado das experiências, bem como a abundância das possibilidades à frente.

Nas relações, consegue enxergar o melhor de si e do outro, criar vínculos saudáveis, conviver de um jeito aberto e leve, baseado na interdependência, e não na dependência. Já na seara espiritual, confia numa inteligência superior que nunca nos abandona e que nos oferta bênçãos.

Quatro passos para se reconciliar consigo mesmo

Se você quer se apaziguar com o ser humano que é, Jacqueline sinaliza, pelo menos, quatro portas que precisarão ser abertas. A aceitação é a primeira delas. Isso implica aceitar tudo o que nos foi ofertado
nessa vida. O divino, nossa origem, nossos pais, a forma como fomos conduzidos, nossos traumas, nossa própria natureza, nossas limitações e qualidades, embaralhadas.

Feito isso, teremos acesso a uma segunda chave, que é a reconciliação ou perdão. Ou seja, fazer um pacto, uma aliança consigo mesmo, viver bem com tudo o que somos, resgatando a autoestima e o amor-próprio. Isso vai trazendo a gente para dentro do nosso ser, do nosso corpo interior. A terceira chave é sentir essa morada sagrada, templo da nossa alma, e começar a realizar o que ela nos pede.

Isso, enfim, nos leva para a quarta chave, que é a presença. Estar relaxado em si, lembrando de quem você realmente é, e, ao mesmo tempo, ativo, se conduzindo para onde a essência deseja. “Essa é uma jornada evolutiva que nos liga ao fluxo maior da existência e nos faz um canal de experiências com propósito aqui na Terra, de forma gentil e tranquila, confiando nas sincronicidades e na nossa missão”, sintetiza a mentora.

Deixe a vítima partir

Essa é uma prova de maturidade e de autorresponsabilidade. Quem está preso na criança ferida dificilmente abrirá a primeira porta, quem dirá as demais. Como pontua a terapeuta Priscila Lee, especializada em Psicologia Positiva e criadora da mentoria Trilhas de Ser, para nos aceitarmos, precisamos abrir mão do apego muito comum ao papel de vítima, como também aos jogos de sofrimento e vingança.

“Temos de atualizar a dor dentro de nós. Na infância, doeu, mas agora, na idade adulta, temos outras ferramentas e podemos ter outra visão do ocorrido, compreendendo-o como um pedaço da história que compõe a nossa existência, e não com uma emoção que é parte de nós”, ela coloca.

A especialista ainda alerta para o risco de o sofrimento que nos aferra à vítima acabar justificando a nossa falta de ação, daí a resistência a aceitar os dissabores. Se o fizermos, vamos ter de parar de sentir pena de nós mesmos e tocar a vida em busca da realização, podendo errar e se frustrar nessas investidas, o que pode ser bastante ameaçador. Mas é importante ter em mente que esse processo não é linear. Portanto, seja paciente com as curvas, subidas e descidas.

“Haverá momentos em que vamos conseguir ter uma perspectiva mais alentadora sobre nós mesmos em nossa caminhada, em outros vamos sofrer uma queda e nos desconectar desse lugar que havíamos conquistado. Nada do que é natural, orgânico, é linear. Logo, vamos espiralar pelas camadas dos processos interiores”, pondera Priscila.

Ilustração de uma mulher encostando as mãos em sua sombra
Acolher a própria dor também significa reconhecer que não dá para mudar o passado (Imagem: GoodStudio | Shutterstock)

Permita-se sentir

A terapeuta e palestrante Solange Medeiros, especializada em Medicina Tradicional Chinesa, conheceu, milímetro por milímetro, uma espiral que levou anos para ser percorrida. Depois de quase ser tragada por um turbilhão de revolta, sentimento de inferioridade e tristeza profunda, ela aceitou que nesta vida não geraria um filho biológico. Solange, que sempre desejou ser mãe, sofreu três abortos espontâneos, sendo um deles de uma gestação gemelar.

“Foi uma experiência muito frustrante, deprimente e traumática. Me senti culpada, sozinha e sem acolhimento de algumas pessoas próximas e da sociedade, que não sabe falar sobre isso”, ela desabafa. Trancada em sua dor, ela mal podia ouvir as consolações que tentavam amenizar as sucessivas perdas que havia sofrido. Além disso, se martirizava conjecturando como teria sido sua vida se os filhos estivessem crescendo diante de seus olhos.

Sabiamente, ela se permitiu sentir todas as fases dos seus lutos e, enfim, aceitar que não poderia mudar o que havia se passado e que a vida dela se desdobraria em outros enredos. “Depois de fechar as feridas e ficar com as cicatrizes, eu entendi que poderia ser mãe de uma outra forma, como cuidar, amar e dar carinho a mim mesma, à minha família, amigas, clientes, alunas, aos trabalhos voluntários e ao meu cachorro Caramelo, que foi resgatado da rua”, lista Solange.

Deixar de sentir também significa livrar-se do prazer

E como aceitar uma doença avassaladora em pleno vigor dos 31 anos de idade? Quatro anos atrás, Carolina Vendramini, professora de português e mediadora de conflitos, demorou para acreditar que, saudável como era, havia recebido o diagnóstico de câncer de mama e, ainda por cima, a indicação de uma mastectomia bilateral.

Ela sentiu um medo monstruoso e não conseguia desgrudar o pensamento da batalha que teria pela frente. Um dia, ouviu uma voz lhe soprar: “Você vai enfrentar porque ama viver”. “Isso me confortou e, ao mesmo tempo, me fez pensar que, se eu tinha a força necessária para enfrentar o câncer, então é porque era isso o que ia acontecer. Dito e feito”, ela se recorda.

Para Carolina, foi fundamental não interromper os planos que ela tinha traçado junto com o marido de comprar e reformar um apartamento, ao mesmo tempo em que estava disposta a sentir tudo o que se apresentasse, do lamento à agonia, passando pela esperança e pelo otimismo.

“Eu já havia vivido outras experiências difíceis usando como recurso a anestesia, a dissociação. Tinha estado ausente da minha própria vida e não era assim que eu queria passar por isso. Pois, se a gente deixa de sentir para se poupar da dor, também acaba se privando do prazer e de tudo de bom que pode sentir”, ela diz.

Por essa razão, Carolina chorou todas as águas que pediram vazão, mas também procurou se cercar de positividade e humor, lição que aprendera com o pai quando este enfrentou uma doença terminal. “Com a notícia da cura, eu me senti poupada, grata, privilegiada por ter sido tudo muito mais rápido do que eu esperava. Ainda aproveitei a bagagem do desenvolvimento pessoal para fazer mudanças na minha carreira”, revela.

É como escreveu João Carrascoza no livro Trilogia do Adeus (Alfaguara): “Aquilo que a vida nos dá não é o que nos determina, apenas o que nos inicia. O que nós mesmos nos damos, no empuxo de viver nossos instantes, é o que pode virar esse jogo”.

Por Raphaela de Campos Mello – revista Vida Simples

É jornalista e vem sentindo as primeiras brisas da aceitação depois de uma longa desavença com fatos da vida.

Redação EdiCase

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