“Tipo sanguíneo: O+ bêbado”; “cerveja deveria ser como problema: surgir do nada”; “hoje eu só queria um abraço bem forte e uma voz bem baixinha dizendo: vamos beber, eu pago”. Não sou tão apaixonada assim por cerveja para trazer o assunto à tona na menor brecha que aparece. Mas, se a primeira frase desta reportagem causou alguma surpresa, a segunda dissolveu uma eventual cara amarrada e a terceira disparou o som da sua risada, você vai me entender.
Em um sábado próximo, por volta da hora do almoço, eu e meu namorado estávamos estressadíssimos com várias aporrinhações que tivemos de resolver na rua. No caminho de volta para casa, chateados, um com o outro, inclusive, vimos um boteco de esquina com mesas na calçada e decidimos entrar para comer algo.
Ao sentar, as frases que eu acabei de citar estavam impressas no papel-toalha sobre a mesa. Nossa bomba-relógio interna foi francamente desarmada pela imprevisibilidade das piadas. O mecanismo biológico por trás do humor que caiu sobre nós é conhecido. O cérebro acorda e presta atenção quando algo foge do padrão. Uma cutucada engraçada nos tirou do piloto automático da rabugice.
O escritor israelense Amós Oz mencionou certa vez que gostaria de ter inventado “a pílula do humor”, capaz de amolecer a rigidez dos corpos e dos espíritos. Em nosso caso, parecia que havíamos tomado a tal poção, já que o efeito dos ditos espirituosos diluiu nossa raiva e sintonizamos com um reconfortante “deixa pra lá”.
“A paz começa com um sorriso”
Essa frase acima, de Madre Teresa de Calcutá, não estava estampada no bar (acho que a religiosa nem se importaria se estivesse), mas iguala, em teor de descompressão, os ditos espirituosos de antes. Não à toa, integra o livro Rir é Preciso – Descubra a ciência por trás do humor e aprenda a usá-lo para atravessar períodos difíceis e criar relações mais próximas (Sextante), lançamento do psiquiatra Daniel Martins de Barros.
Médico do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, doutor em Ciências e bacharel em Filosofia, ele explica – com muitas referências históricas, estudos e pesquisas –, o poder oculto do riso. A tese: nenhum de nós usa o humor em todo o seu potencial. Era necessário alertar-nos para isso e compartilhar meios de ampliar essa verve que, jura o especialista, está embutida em todos nós. “É só cavar que você chega lá”.
Riso melhora o emocional
A paixão pelo tema já era antiga, mas Daniel conta que a ideia do livro propriamente dito só ganhou força diante de um momento de tensão mundial: a pandemia do coronavírus. “Passados os primeiros meses de isolamento, eu mesmo me vi mais irritado, quase deprimido, e busquei tomar algumas atitudes: me desconectei por uns dias para descansar e maratonei minha série de comédia favorita (Parks and Recreation). Estivesse ou não com vontade, me disciplinei a assisti-la todos os dias. Isso me ajudou a gastar menos energia e experimentar emoções mais agradáveis”, conta.
O riso ajudou o psiquiatra a melhorar seu próprio estado emocional. É sobre isso que a matéria busca jogar luzes: perceber o humor como ferramenta para “amolecer” tristezas e durezas da vida. Buscar ajustar a emoção quando a gente se sente impotente para controlar todo o resto. Teimoso e rebelde, o humor irrompe quando menos esperamos e insiste em abalar estruturas, sacudindo até as mais cristalizadas. Acredite: eu estava com uma capa impenetrável de mau humor antes de sentar naquele bar.
Antídoto contra o medo e o ódio
Charles Chaplin, que foi capaz de ridicularizar Hitler em O Grande Ditador, produzido em plena Segunda Guerra Mundial, dizia que o humor dispersava as nuvens da suspeita e da angústia. Até por isso os ditadores odeiam a comédia, porque ela tira o poder de quem se acha importante demais. Quando as pessoas riem, sentem menos medo, ficam mais leves e passam a duvidar do que é apresentado como absolutamente certo.
Outro especialista na arte de fazer rir, Grouxo Marx tinha uma frase que resume a regra número um para fazer tudo ficar mais tolerável. “Eu jamais entraria para um clube que me aceitasse como sócio”, costumava repetir. Ele sabia rir de si mesmo.
Quem se leva muito a sério perde a liberdade de ser falível. Vive aprisionado pelo perfeccionismo ou, pior, pela crença de que está sempre certo. Pare e pense um minuto no contraste entre as pessoas mais sisudas e as mais amáveis que você conhece. É bem provável que consiga notar a dificuldade que as primeiras têm em fazer piruetas com as ideias e brincar com as certezas. Especialmente nos momentos mais tenebrosos.
Rir ou chorar?
Daniel Barros puxa sempre a sardinha para o lado do riso. Ao fazer o levantamento de dados para o livro, no entanto, percebeu que recorrer ao humor diante de situações de sofrimento gera dúvidas na humanidade há muito tempo.
E cita uma passagem curiosa do século 17, quando a questão virou tema de um debate respeitável. O padre português Antônio Vieira foi convidado a defender Heráclito (540–470 a.C.), o “filósofo chorão”, “o obscuro”. Já o padre genovês Girolano Cattaneo tinha de sustentar as razões de outro pensador da Antiguidade clássica, Demócrito (460–370 a.C.), este conhecido como “o filósofo que ria”.
Na “peleja”, de um lado, diante desse mundo cruel, parecia claro que só poderíamos chorar. De outro, o riso se postou como mais valioso do que as lágrimas, pois, “se não trouxe proveito, trouxe satisfação e, se não convenceu seus seguidores, ao menos os manteve contentes”, justificou Cattaneo.
Rir é um ato de resistência
O riso não desrespeita a dor. É apenas uma forma de compensação. “A adversidade permanece, mas, ao fazer humor, a pessoa de certa forma se vinga, simbólica e inteligentemente, do que ela teve ou tem de aturar”, escreve Daniel. O humorista Paulo Gustavo dizia a mesma coisa. Para ele, rir era um ato de resistência.
“O tempo alegre” vem sendo mais e mais estudado ao longo dos anos. A hora e a vez do riso, da transgressão, do achar graça, têm uma função. Rimos para dar um sentido à vida, para ver as coisas por outro ângulo, para colocar para fora o que dá tanto trabalho manter escondido, para descarregar a energia acumulada, para lembrar que tudo é duro para todo mundo e, por isso mesmo, precisamos dar espaço para a brincadeira. “Todos os animais sociais brincam – de aves a elefantes, de cães a macacos. E o que isso significa? Que é importante sinalizar a intenção não hostil de algo”, frisa Daniel.
A teoria do alívio
O riso é sinal de que está tudo bem. Bandeira branca. Pode chegar. Por isso, aproxima as pessoas, acolhe, contagia (é científico: estudiosos britânicos perceberam que, quando alguém fica mais feliz, seus amigos têm 25% a mais de chances de ficarem felizes também). E, como corpo e mente são uma coisa só, se a alma está em paz, a fisiologia acompanha e a musculatura relaxa.
A respeitada Clinica Mayo, de atendimento a condições sérias, nos Estados Unidos, resume as vantagens para o organismo. Quando você começa a rir, não apenas alivia sua carga mental, mas estimula muitos órgãos. O riso aumenta a ingestão de oxigênio, favorece o coração, os pulmões, esfria sua resposta ao estresse e culmina em um banho de analgésicos naturais.
Sem panaceia, trata-se de destacar a força coadjuvante do riso como remédio. É só lembrar que toda doença é uma experiência estressante, e o estresse piora a forma de reagir à doença, formando um círculo vicioso. Por aliviar a tensão, a risada minimiza alguns sintomas de depressão, ansiedade e pode fazer você se sentir mais feliz, com a autoestima renovada. Pesquisas envolvendo pacientes com câncer revelaram, por exemplo, que o riso aumenta a capacidade de lidar com o desgaste emocional gerado pelo processo.
É importante rir de verdade
A risada alegre pode ainda aliviar a dor. Um dos experimentos mais famosos nesse aspecto é o de pessoas submetidas a cirurgias ortopédicas que podiam assistir à TV durante o procedimento. Aquelas que viram comédia pediram menos analgésico do que as que acompanharam documentários. Além disso, houve uma relação positiva para o sistema imune.
Segundo a psicóloga clínica e pós-doutora em neurociência pela Universidade de Lille, na França, Simone Domingues, “existe um campo de pesquisa chamado neuropsicoimunologia, que investiga a interação entre os sistemas nervoso, imunológico e endócrino. Os estudos nessa área apontam que o riso leva a um aumento das células T e de anticorpos responsáveis pela defesa do organismo”.
Mas, é importante rir de verdade, acentua a neurocientista. Aquela gargalhada que, além de fazer surgir rugas ao redor dos olhos, contrai o diafragma e os músculos do tórax de forma espasmódica, expelindo ar de modo a produzir o inconfundível rá-rá-rá, é garantia de que a área certa do cérebro foi ativada e uma orquestra de hormônios de paz, amor e bem-estar inundou seu corpo. Entre eles: serotonina, endorfina, dopamina e ocitocina (mais associado à alegria, à empatia e à criação de laços afetivos).
“Temos conhecimento suficiente para defender que o humor não deve ser menosprezado”, afirma o endocrinologista Ricardo Barroso, de São Paulo. De acordo com o profissional, em quadros de dor crônica, como a fibromialgia, além de toda a abordagem multidisciplinar que envolve medicamentos, atividade física e meditação, estar na companhia de pessoas alegres e assistir a comédias de propósito são úteis para o tratamento. “Primeiro, ajuda a pessoa a prestar atenção em algo novo, diferente, e, portanto, a desfocar da dor. Segundo, quando a risada eclode, a endorfina entra na circulação com seu efeito analgésico”, lembra.
Como ampliar o potencial do riso?
Para tirar maior proveito dessa despressurização tão benéfica, a primeira lição é simplesmente “querer”. Como toda ginástica, quanto mais você se exercita, mais consegue preparar a mente para o salto que leva ao chiste. “Não se preocupe se ninguém rir da sua piada, a mera disponibilidade para fazer graça já é uma graça. Bom humor é incompatível com gravidade ou o peso de acertar. Tem a ver com leveza”, diz Daniel Barros.
A leveza, por sua vez, contém humildade para aceitar as próprias fragilidades e assumir suas inseguranças ou imperfeições em vez de tentar escondê-las. A designer de moda e estudante de antropologia física Danieli Massi explora essa franqueza em seu perfil @adanivestenada, no Instagram. Lá, ela já deixa claro que é fluente em sarcasmo e mestranda em deboche. Seus posts se destacam pela contação hilária de histórias envolvendo moda e comportamento do consumidor – o que nem sempre agrada a todos.
O importante é ser feliz
Certa vez, Dani abordou o desgosto de alguns seguidores de forma inusitada: “Caso algumas pessoas tenham ficado ofendidas com minha forma de contar a história, peço desculpas e vou deixar o contato da minha psicóloga, porque ela disse que isso é uma ferida narcísica, quando você se torna um hater só porque alguém falou algo de que você não gostou”. (Curiosamente, duas pessoas a procuraram pedindo o contato).
Lidar com esses reveses é a superfície de um aprendizado longo. “Eu levava tudo como um ataque pessoal. A terapia me ajudou a ver o humor como aliado para comunicar minhas ideias e a perceber que não preciso me ferir com a opinião de alguém nem ferir o outro porque ele tem opiniões diferentes das minhas”. Mais do que isso, Dani teve um insight: “a gente grava mais as coisas engraçadas, mais uma fofoca do que uma notícia. E eu sou assim, adoro ler biografias, adoro fofoca, adoro saber o que está fora dos livros de história”.
Na vida em casa – Dani mora com o marido e a filha pequena –, há momentos de maior reclusão por causa da fibromialgia. Nas crises de dor, a moça sabe que o corpo está pedindo para descansar e ir para a cama. “Aprendi que é passageiro e aproveito os mimos que recebo. A vida já é tão difícil, por que não buscar um pouco de humor?”. É um turning point. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, foi um adepto contumaz desse ritual. Para ele, rir era uma forma de reconquistar, a partir de uma atividade psíquica, um prazer que havíamos perdido. O importante é ser feliz. O resto a gente mistura com vodca, cerveja, Millôr, Paulo Gustavo, Tatá Werneck ou Friends. Escolha a sua dose à vontade e vá para a avenida. A temporada é propícia.
Por Kátia Stringueto – revista Vida Simples
É jornalista e admite que não sabe contar piada, mas faz o possível para buscar o riso sempre que pinta um climão em família.