Pode parecer um contrassenso difícil de assimilar. Mas acontece o tempo todo. Mais do que a gente gostaria. Com tantas possibilidades de encontros, aprendizados e realizações pelos caminhos que trilhamos ao longo da vida, quantos de nós não acabam se apequenando perante tal imensidão? Isso não é para mim, está bom assim, não preciso de muito, a gente aperta e dá um jeito, vai levando.
Embora o incômodo exista, podemos permanecer um tempão nesse lugar estreito e escasso de descobertas gratificantes. Sem assumir para nós mesmos que, sim, temos ambições e desejos. Queremos desfrutar de mais afeto, conforto, sucesso, felicidade, saúde, vitalidade.
Mas parece que a culpa e o constrangimento fazem desse impulso algo inapropriado. Egoísta até. Quando, na verdade, nos permitirmos sonhar e gerar uma colheita farta nas mais diversas áreas do viver é sinal benigno. Significa que, em nosso íntimo, nos sentimos dignos e merecedores do que a vida tem de bom a nos ofertar.
“As pessoas precisam ter um mínimo de ambição para que seu desenvolvimento seja progressivo. Quem se acomoda com o mínimo fica estagnado. Isso porque, ao rejeitar novas possibilidades e oportunidades, o indivíduo vai se tornando cada vez mais limitado, restrito ao que já tem e conhece”, observa Monica Machado, psicóloga e fundadora da Clínica Ame.C, pós-graduada em Psicanálise e Saúde Mental pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein.
“Nenhum ser vivo consegue viver tempos prolongados de privação das necessidades, e viver uma vida com sentido é uma necessidade humana. Quando isso não acontece, o adoecimento pode surgir como uma resposta de que algo vital não foi atendido, alguma parte de nós ficou perdida e precisa ser resgatada de nossa história”, corrobora o psicólogo Thiago Domingues, que também é poeta e viajante.
O mais de cada um
Claro que a largueza do desejo varia de pessoa para pessoa. Para um, permitir-se “mais” pode significar reduzir a carga horária de trabalho e gozar de tempo livre para devanear ou acompanhar de perto o crescimento dos filhos; para outro, pode representar solidez financeira para dormir em paz, sem ser assombrado pelo fantasma da escassez que mutilou a pureza da infância.
Também pode dizer respeito a uma rotina em que a saúde física, mental e emocional determina o compasso da agenda; ser capaz de bancar um ofício “alternativo”, pouco valorizado socialmente, mas que honra a vocação da alma, ou, então, encontrar dentro de si motivação e ânimo para voltar a estudar. Conforto por estar onde se está, sendo quem se é, cultivando relações e fazeres enriquecedores. Tudo isso pode ser chamado, aqui, de “mais”.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche diria que estamos nos referindo à “vontade de potência”, aquela ebulição interna gerada por experiências que enchem nossos dias de sentido e alegria. “Onde encontrei vida, encontrei vontade de potência”, ele escreveu. Na visão da filósofa Viviane Mosé, autora de Nietzsche Hoje (Vozes Nobilis), “tudo o que vive quer mais; o querer da própria vida é expandir, ir além, seguir sempre adiante”. Que a gente não se esqueça mais disso.
Amarras ancestrais
Entretanto, muitos podem ser os freios que nos fazem morrer de sede em frente ao mar, parafraseando o compositor Djavan. Vamos chegar mais perto de dois deles: medo e culpa. Medo, por exemplo, de seguir novos rumos e, com isso, ter de abdicar do conhecido ou da segurança prévia, medo de fazer uma aposta significativa e se decepcionar, medo de assumir grandes responsabilidades e não dar conta delas, em suma, medo de atender ao desejo por amplitude e se machucar.
Culpa por desejar fazer diferente do que foi aprendido dentro da família, culpa por conquistar uma posição confortável enquanto tanta gente padece num mundo desigual e injusto, culpa por se sentir feliz e realizado quando pessoas queridas estão atoladas em queixas e dificuldades.
Acontece que não basta desejar e pronto. Uma hora teremos de fazer escolhas em função do que se deseja. E bancá-las implica se responsabilizar pelas consequências desse ato. Ju De Mari, terapeuta, mentora de carreira para mulheres e colunista do portal Vida Simples, lembra quão conflituoso e angustiante isso pode se tornar para algumas pessoas.
“Para assumir ambições, será preciso romper com algumas (ou muitas) expectativas coletivas, sociais e relacionais sobre o que deveríamos querer e ser. Isso inclui também a própria expectativa em relação a quem a pessoa acha que deveria ser, fazer, comportar-se etc.”, pondera a especialista.
A dupla “medo e culpa”, também é bom lembrar, reflete os valores herdados da tradição cultural católica, predominante em terras brasileiras desde a colonização portuguesa. Medo de sermos punidos por nossos “erros” por um Deus onipresente; culpa por não sermos bons e puros o suficiente. Então, em primeiro lugar, precisamos reconhecer quão entranhado em nós está esse modo de olhar o mundo e atribuir valor às nossas condutas e escolhas.
É preciso se aceitar
Para fazer frente às forças – internas e externas – contrárias ao nosso desabrochar, precisamos estar fincados num “inabalável senso de merecimento”, nas palavras de Thiago Domingues. A firmeza interior virá da capacidade de nos aceitarmos do jeito que somos: imperfeitos, frágeis, em muitos momentos, atrapalhados para tantas coisas, além de atravessados por faltas e lacunas diversas.
Somente desse lugar despido de vaidades poderemos avaliar nossas necessidades e sustentar o alargamento do nosso desejo. Mas, para nos assentarmos nessa compreensão, precisamos sentir compaixão por nós mesmos, segundo Ana Raia, especialista em desenvolvimento humano.
“Enquanto nós, especialmente as mulheres, enfatizarmos nossos buracos, partes nossas que não atendem ao padrão ideal imposto pela sociedade patriarcal, aquilo que não alcançamos ainda, não nos veremos como pessoas inteiras e, consequentemente, merecedoras de viver uma vida abundante em todas as áreas”, frisa.
Segundo ela, precisamos olhar para nós mesmos com gentileza e compaixão a fim de nos acolhermos como seres humanos em busca de aprimoramento. “Não existe esse lugar de você preencher e ser tudo ao mesmo tempo, mas, sim, o sentimento de se achar suficiente, embora ainda esteja no caminho da própria evolução.”
Quantas de nós sentem que não têm “direito” a uma vida mais leve, satisfatória e autêntica porque absorveram a lógica de que a estrada é árdua, repleta de renúncias, sem brechas para o prazer? E assim nos encolhemos e sequer cogitamos uma narrativa diferente, mais generosa e interessante. “Nossos sonhos refletem a profundeza do nosso ser, nossos desejos espelham a forma como nos enxergamos. Se eu me vejo pequena, não vou me permitir sonhar grande”, avalia Ana.
A essa altura da sua jornada, ela não consegue descolar a permissão para se expandir da espiritualidade. Ana prefere acreditar e honrar uma força maior que é bondosa, tenha ela o nome que tiver, que deseja que a gente viva da melhor forma possível, com abundância, uma vez que somos um pedacinho desse grande quebra-cabeça divino. E, portanto, centelhas da força criativa geradora de tudo o que existe.
Recado da nossa verdade
Aliás, um ponto inescapável nessa busca por mais espaço para o desejar consiste em distinguir a ambição saudável daquela que desconhece limites e, por isso, pode se desgovernar em suas excessivas demandas. “É importante reconhecer nossas necessidades reais, não as que são estimuladas pelas mídias, para buscarmos o suficiente, a justa medida das coisas. O conhecimento de si ajuda a sair das armadilhas das necessidades inventadas para perseguir o que realmente precisamos”, pontua Domingues. “Primeiro é preciso se apropriar da sua essência para que não se perca no mundo da ambição, em que o indivíduo é um padrão na sociedade capitalista, ou seja, alguém que não valoriza o ‘ser’, mas o ‘ter’”, reforça Monica.
Quando afirmamos nossos valores pessoais e escolhemos o que faz sentido para nós a cada circunstância e contexto, “é como dar crédito à nossa figura de autoridade interna e ao direito à expressão da nossa autenticidade”, diz Ju De Mari.
A partir daí, será mais fácil exercitar a curiosidade e a criatividade, para que a gente recupere o prazer de sonhar e realizar. Inclusive ele, o dinheiro, fonte de culpa, desconforto e distorções, precisa fazer parte da vida neste plano sem ser limado pela excessiva humildade, pois as finanças são, antes de tudo, uma energia de fertilização dos caminhos eleitos pela nossa essência. “O dinheiro pode nos colocar em relação com o mundo de uma forma justa e não predatória. Isso vale também para o afeto, saúde e vitalidade”, compara Domingues.
Conforto material
Daniela Carvalho, criadora da Dinheiro é Meio, plataforma de educação, gestão e transformação financeira para mulheres, não tem dúvidas disso. Aliás, sua missão é justamente “limpar” o dinheiro das más impressões que recaíram sobre ele ao longo da história, nos fazendo enxergá-lo como adubo para nossos propósitos de vida.
Como ela bem contextualiza, vivemos num país marcado por desigualdades, crises políticas e econômicas, então é natural que muitos de nós carreguem na memória experiências materiais ligadas à escassez e ao medo da falta. E que esse registro se perpetue no cotidiano não é de se espantar. A questão, segundo ela, não é encarar nossas crenças limitantes como um mal a ser exterminado, mas sermos capazes de reconhecê-las e transformá-las.
“Elas são parte de quem a gente é e nos trouxeram até aqui. Por isso, eu trabalho para incluí-las, pois o simples fato de saber que elas existem, o simples fato de reconhecer que o que a gente pensa sobre dinheiro é fruto da família onde a gente nasceu, do país onde a gente cresceu, da escola que a gente cursou, da igreja que a gente frequentou, já produz ganhos na nossa relação com a matéria”, justifica.
Se a gente conversar abertamente sobre essas “travas”, ela defende, o dinheiro deixará de ser tabu. Daniela acredita que, mesmo antes de a nossa situação financeira se afrouxar, a gente já pode encontrar mais conforto, clareza e tranquilidade pelo simples fato de darmos nomes às nossas aflições e receios ligados aos cifrões. “O que produz bem-estar é a gente se aproximar do assunto dinheiro, ficar íntima dele, pedir ajuda para deixar de ter medo dos números, deixar de ter medo do que os números da nossa vida financeira contam a nosso respeito”, enfatiza.
Uma culpa individual
Mas onde alocar a culpa por nos guarnecer materialmente pertencendo a um país onde faltam políticas públicas para promover a equidade, sequer para garantir que todas as pessoas tenham o mínimo necessário? “A gente se impõe uma culpa individual, quase uma vergonha sobre esse problema. Como se, ao desejar o bom para mim, eu estivesse contribuindo e alargando as desigualdades sociais”, ela admite.
Veja só como há uma perspectiva bem mais alentadora a esse respeito. No entender da especialista, quando a gente deixa de se apropriar de 100% do potencial das nossas possibilidades de carreira, de dinheiro, não está contribuindo com a vida de ninguém. Só está deixando de assumir o quilate de transformação que vem junto com o dinheiro, com o conforto, com o bem-estar.
O que, senão essa estrutura, nos permite fazer mais do que a gente veio realizar neste mundo? Também já parou para pensar o que aconteceria se as pessoas tocadas por preocupações sociais deixassem de se responsabilizar pelos próprios ganhos financeiros e de fazerem-nos fluir para os lugares certos? Pois então, o dinheiro que a gente deixa de ter não some do mundo. Muito pelo contrário. “Ele só segue concentrado nas mãos daqueles que não têm as mesmas preocupações que a gente”, argumenta a especialista.
Espero que as visões e os argumentos desta reportagem o ajudem a se sentir merecedor do que anseia quando, em silêncio, conversa com as estrelas. Afinal, se a gente se permite “mais”, todo o resto também tem a chance de se dilatar, como quer a vida, em sua sábia vontade de potência.
Por Raphaela de Campos Mello – revista Vida Simples
É jornalista. “Mais”, para ela, significa cercar-se de pessoas que enriquecem seu olhar para a vida.