Sempre achei “amor” uma das palavras mais bonitas. Pequena na grafia, mas capaz de uma força imensa, ela me foi apresentada na escola, quando eu ainda era criança. Mas, na prática mesmo, só fui entender seu significado com meu pai. Ele nunca disse que me amava, mas, por seus pequenos gestos, eu sempre soube.
Todos os dias, ao chegar do trabalho, ele assobiava no portão e trazia surpresinhas: um chocolate novo, uma bala diferente, um livro, um abraço apertado. Também me contava as melhores histórias e me colocava nos ombros para desbravar o mundo que existia além dos muros da nossa casa.
Suas linguagens do amor eram tempo de qualidade e presentes. Consequentemente, foram essas que também compreendi como primordiais e passei a aplicar em todas as minhas relações. Após a morte do meu pai, tentei preencher o vazio da sua ausência com esse amor de doação, esperando, assim – e a qualquer custo –, que as pessoas também me amassem de volta.
Descoberta do amor-próprio
Foi já mais velha, para ser honesta, há mais ou menos três anos, com a ajuda da terapia, que descobri a existência de um outro tipo de amor: o próprio, ainda mais forte do que aquele aprendido na infância e, talvez, até mais bonito. Porque nos recarrega por inteiro e mostra que, quando gostamos de nós primeiro, estamos prontos para viver relações mais profundas e verdadeiras.
No entanto, esse amor não costuma ser ensinado na escola nem durante a infância. Ouvimos algo daqui, dali e, algumas vezes, até somos incentivados a cultivá-lo. Mas, geralmente, crescemos sem saber direito sobre sua existência, nos espelhando apenas no amor que recebemos e pensamos ser suficiente para nos abastecer.
Conforme nossas experiências de vida vão aumentando, percebemos que não é. E caímos nesse abismo, no qual mora a dualidade entre a necessidade de amar o outro, como aprendemos ser primordial, e esperar que alguém também nos ame de maneira igual ou parecida. Quando isso não acontece, nos sentimos vazios em uma busca interminável por aceitação, esquecendo que o essencial está em gostar de nós, para então partilhar nosso afeto.
É esse amor dedicado a nós, por nós, que nos fortalece. E ele é um cultivo, deve ser regado e alimentado diariamente, para crescer e ocupar cada vez mais os nossos espaços. Mas como fazemos isso? Como avivar esse amor em nós até se tornar algo espontâneo?
Um espelho que seja nosso
Talvez uma forma gentil de começar essa investigação seja refletir e compreender, de fato, quais fontes de amor conhecemos e estamos acostumados a receber e a doar. Clara Diniz Rezende é terapeuta, especialista em Psicologia Junguiana, Arte e Imaginário. E ela me disse que, na maioria das vezes, aprendemos a nos amar nos espelhando na forma como nossos pais amavam a si mesmos e a nós, de maneira prática, no dia a dia.
“Pelo zelo, pela candura nas palavras de orientação, pela calma e paciência com que lidavam conosco, pelo interesse em estar presentes em nossas vidas”, explica. Também vale considerar que nem todos os pais fizeram autodescobertas nem vivenciaram esse amor deles para eles mesmos. Como consequência, não puderam ou não souberam transmitir aos filhos uma referência de amor-próprio, porque também não o conheceram.
“Quando paramos para olhar para a dimensão do que a vida é, no processo de análise, por exemplo, começamos a perceber que o que os pais fizeram foi o que puderam fazer do que também foi feito deles”, pontua Clara.
Nesses casos, o tempo e as realidades da vida serão os responsáveis por nos mostrar (ou não) a necessidade do cultivo do amor por nós mesmos. À medida que ampliamos nossas conexões e conhecemos mais sobre o mundo e as relações, além das familiares, percebemos que amar e sermos amados como aprendemos nem sempre basta.
Uma jornada de autoconhecimento
E aquela falta que sentimos, bem no fundo do peito, tem mais a ver com a forma como nos vemos, nos respeitamos e permitimos que o outro nos acesse. Quanto mais nos vasculhamos a fim de nos reconhecer, mais entramos em contato com a existência desse amor-próprio. E temos novas chances de trazê-lo para a realidade cotidiana e para as relações, que, aliás, ficam bem mais leves.
Dizendo dessa forma, parece simples. Mas não é assim, tão rápido. Muitas vezes, podemos demorar bastante a perceber que o que falta para abrir novos caminhos é exatamente essa dedicação e esse olhar para dentro.
“Aqui estou compreendendo e trabalhando a ideia de amor-próprio como a capacidade de se conhecer minimamente e, a partir desse autoconhecimento, querer para si o que lhe fará bem”, observa Clara. Ela ressalta que essa busca também diz sobre “escolher, dentre tantas portas, aquela que conduzirá cada pessoa à realização do que quer para si”.
A gente sempre em primeiro lugar
Uma vez escolhida a estrada que nos leva para nós, nossos desejos, vontades, sonhos e verdades, experimentamos na prática parte do cultivo do amor-próprio. Porque, entre tantas coisas, ele nos ensina exatamente isso: a nos ouvir primeiro, nos priorizar, entender quem somos individualmente, respeitar e cuidar de cada parte de nós, da mesma maneira como nos dedicamos ao outro.
“Quando uma pessoa ainda não se aproximou desse estado, ela tende a ser conduzida pelos outros, sujeitando-se a situações, locais e companhias que não trarão para si o sentimento de realização, de paz, de bem-estar”, pontua Clara.
Tudo para preencher espaços que se esvaziam ainda mais sem o cultivo do autoamor. Aqui, cabe dizer que essa decisão de olhar para nós primeiro não tem nada a ver com egocentrismo ou egoísmo, como tantas vezes somos levados a pensar. Pelo contrário: cuidando de nós, também nos fortalecemos para conseguir estender a mão a alguém quando for preciso. Porém, estaremos aptos a fazer isso de uma forma mais consciente, sem abandonar nossos desejos e crenças para acudir quem está ao redor.
Resgatando o amor-próprio
“Antropologicamente, estamos inseridos em uma cultura que valoriza o cuidado com o outro e rotula as ações de autoamor como egoísmo. Historicamente, fomos ensinados que servir o outro é honroso, principalmente quando nos anulamos”, ressalta Naara Amim.
Ela é minha psicóloga e, juntas, temos trilhado um caminho gentil de reencontro ao que me é essencial, mas foi esquecido durante minha jornada. Segundo ela, esses mesmos ensinamentos nos convencem de que cuidar de nós é uma vaidade desnecessária.
E que impor limites pode acabar afastando as pessoas da gente. Aí está feito: nos colocamos em último plano, alimentando cada vez mais os medos de rejeição e nos doando por completo, temendo o abandono do outro e nos afastando ainda mais do amor por nós.
“É difícil nos amar quando concordamos com essas ideias e aceitamos na prática diária que tudo isso se torne verdade. É preciso quebrar esse paradigma e romper esses padrões de pensamento”, completa Naara. A quebra acontece quando honramos quem somos, compreendendo que, ao negligenciar nós mesmos em busca de aceitação, nos afastamos ainda mais de qualquer manifestação do amor genuíno.
Longe dos moldes, perto de si
E não é só isso. Também é difícil cultivar o amor-próprio quando nutrimos uma percepção negativa de nós mesmos, quando nos comparamos injustamente com outras pessoas, quando nos julgamos e convivemos com críticas externas e constantes relativas à nossa personalidade, corpo, aparência e formas de expressão. Eu sei que é complexo.
Mas não podemos esquecer que nutrir o amor-próprio passa também pela compreensão de que não há um padrão de perfeição a ser seguido. Somos diferentes uns dos outros, livres para ser e viver conforme nossos sonhos, guiados pela beleza e pelas verdades que trazemos dentro da gente.
“O amor-próprio envolve primeiramente o pensamento consciente de respeito e aceitação por quem somos, a compreensão de limites e necessidades, bem como a valorização da nossa existência no mundo e o reconhecimento das próprias qualidades”, pontua Naara.
É claro que esse movimento de se atentar para o externo também é válido e necessário, mas não só. Cuidar do corpo em equilíbrio com a mente e as emoções é fundamental para entender, na prática, como o “cuidar de si” é potente e funciona quando nos dedicamos a ele.
Da anulação ao equilíbrio
Na vida da Mariana Mendes, essa percepção despontou com a ajuda da terapia. Hoje ela é facilitadora de processos de reconhecimento e merecimento do autoamor. Mas, até chegar a esse ponto, percorreu uma estrada longa, cheia de armadilhas que só a afastaram de si. “Vivi um relacionamento por muitos anos, no qual aprendi que a doação ao outro é que faria aquilo durar. Me anulei e me vi perdida de mim”, conta.
Felizmente, ela compreendeu que gostar não é sinônimo de abrir mão. O equilíbrio em qualquer relação está em ambos se movimentarem para sustentar os pilares de uma união. “Como isso só acontecia de um lado, fiquei extremamente cansada e desmotivada”, afirma.
A certa altura da terapia, ela começou a se dedicar mais a si, reencontrando lugares preferidos, passando tempo com pessoas queridas, preservando momentos de silêncio e solidão para se ouvir, descobrindo uma nova paixão pela atividade física e pela corrida.
“A descarga de adrenalina e a produção de endorfina me dão a sensação de cuidado não só com os músculos, mas também com a minha mente. E fortalecem o vínculo com a saúde, na real impressão de que estou fazendo algo por mim”, completa.
Prestando atenção no que nos afeta
Naara afirma que o processo de psicoterapia é muito importante para entendermos mais sobre o amor-próprio. De acordo com ela, “quando ressignificamos algo, também cultivamos o autoamor, uma vez que extraímos aprendizados a partir das experiências, fortalecendo a autoconfiança”.
Tal qual Mariana, cada um de nós, à sua maneira, vai identificando quais ações estabelecem conexões com essa busca do amor por si. O importante é lembrar que, durante todo o caminho, somos aprendizes. E fraquejar, ter algumas recaídas e nos amar menos hoje do que ontem também fazem parte desse encontro. “O primeiro passo é olhar para si mesmo, verdadeiramente, reconhecer dificuldades, nossas partes sombrias, ter calma para saber que tudo tem seu tempo”, recomenda Clara Diniz.
Prestar atenção ao que nos afeta, como nos afeta e buscar não fingir para nós mesmos que “está tudo bem” quando na verdade não está, também ajuda. “Com calma, delimitar espaços entre nós e os outros, preservar a intimidade e a privacidade, conquistar espaços dentro de nós para refletir, desarmar automatismos e reações. Se não sabemos quem somos, não conseguiremos nos unir, apenas nos embolar”, alerta Clara.
Oferenda diária
Por fim, é preciso, ainda, nos reconhecer como merecedores de todo amor. Aceitar que somos dignos dele e nos ofertá-lo gentilmente, um pouquinho por dia, nas mínimas ações cotidianas. Quando tomamos consciência disso, é como se um sinal de alerta acendesse na mente, nos mostrando com mais naturalidade quais situações não condizem com o que desejamos no momento presente. Viramos uma chave interna e estamos prontos para experimentar cada vez mais os prazeres desse autoamor.
“Quando uma pessoa não consegue estabelecer limites para si mesma, tampouco conseguirá fazê-lo para outras pessoas. Se não nos respeitamos, geralmente não cobramos respeito dos outros para com a gente. A partir disso podem iniciar relações abusivas, por exemplo”, observa Naara.
Mas, se sabemos o que merecemos e entendemos o que é inadmissível em nossa vida, automaticamente assumimos uma postura mais firme diante de nós e do outro. E deixamos de aceitar qualquer amor porque já estamos preenchidos pelo nosso.
Aproveito para saudar a voz lúcida da poeta indiana Rupi Kaur, que, certa vez, escreveu: “como você ama a si mesma, é como você ensina todas as pessoas a te amar”. Sejamos cada vez mais gentis com nós mesmos. Amantes fiéis dos seres humanos que somos e que vieram ao mundo para conhecer e amplificar o amor.
Por Débora Gomes – revista Vida Simples
Jornalista. Está aprendendo a honrar e respeitar a si, valorizando suas paixões e construindo relações verdadeiras consigo. Um dia de cada vez.