Escuta empática favorece relação entre pais e filhos adolescentes
Dizer que 2020 foi difícil parece clichê. Acredito que cada um teve seus momentos, perdas e crescimentos. Se pudesse resumir em palavras únicas seriam: separação, tristeza, aprendizado, adolescência. A última, adolescência, é a da filha. Tenho gêmeos, um casal. Mas ela adolesceu primeiro que ele.
A gente percebe que o filho está entrando nessa fase quando a porta do quarto se fecha, as espinhas aparecem, ele ou ela passa a se sentir feio. O nariz é grande demais, o cabelo esquisito. Ninguém-nunca-vai-gostar-de-mim. As risadas cessam quando você se aproxima, e a companhia, antes frequente, deixa de existir. E você se sente… sozinha.
Não há um manual para os pais
Lembro que, na época, em um dia difícil, olhei para fotos antigas e lá estava ela, minha menina. Chorei. Senti-me aliviada e, ao mesmo tempo, péssima. Clara seguia sendo minha filha, só que estava mudando e não sabia como ser a mãe dela, a partir da pessoa que se tornava. Onde está o manual?
Pois é, não tem. Pelo menos não o tanto que existe sobre como se preparar para os primeiros meses do bebê, desfraldar, lidar com os pesadelos noturnos. Como diria a designer Estéfi Machado, mãe do Teo, 15, e uma das pessoas com quem conversei para escrever este texto, “não existem muitos manuais sobre como lidar com um adolescente (comparando com a infância) nem como acolher essa mãe” – vou falar da Estéfi mais para a frente, mas a frase dela coube demais aqui.
Entendi que ser mãe de dois jovens – Lucas adolesceu há pouco – tem me feito aprender ainda mais sobre mim mesma e, principalmente, saber ouvir. Então este é um texto sobre escuta, a partir da fase que eu e você vivemos: a adolescência.
O encontro com a minha adolescente interior
O ano era 1988. Estava no segundo colegial (atual Ensino Médio), e Cazuza lançava a canção “Vida Louca Vida”: “Vida louca, vida… vida breve/Já que eu não posso te levar/Quero que você me leve”. Arrumava o quarto. Tinha 16 anos. Tudo era muito, da alegria à tristeza, da empolgação à frustração. Pensava no meu pai e na frase que havia ouvido dele há pouco: “sinto saudade da minha filha”. Isso me atravessou. Sabia que seguia sendo a mesma, só que mais velha. Estava crescendo, mas seria isso ruim? Como ele não era capaz de me enxergar?
Precisei me encontrar com a minha menina, no quarto da juventude, espaço dividido com a irmã mais velha, a cadeira no canto cheia de roupas empilhadas, pedindo para serem guardadas. “Olhe para a sua adolescente se quiser abrir espaço de conversa com a sua filha”, o convite veio da querida Diana Corso, psicanalista gaúcha que durante anos foi também colunista desta publicação.
Diana havia acabado de lançar o livro Adolescência em Carta: filmes e psicanálise para entendê-la (Artmed), junto com o marido, o também psicanalista Mário Corso, que dedicou anos de estudo para entender a forma de pensar e ser do jovem. Recorri a ela para sanar minha aflição em relação à Clara. Ou melhor, a minha solidão, “saudade da minha filha”, repetindo a mesma frase que havia ouvido do meu pai, décadas atrás.
Estamos mesmo ouvindo?
“Os pais querem que os filhos transcendam, que sejam tudo o que gostariam de ter sido. Pensam assim: ‘você tem mais oportunidades hoje’. Só que, no fundo, o adolescente continua sendo tudo que sempre foi, sentindo-se uma batata podre”, disse Diana, em uma conversa feita por videochamada.
Batata podre, Diana? Sim, todo adolescente se sente feio. Neste instante, lembro da Clara e do Lucas. Ambos reclamam ora do nariz, ora da altura, ora do cabelo… Eu? Na juventude, detestava o tamanho dos seios fartos, era baixinha demais, cabeluda demais, feia demais. É, Diana estava certa. Me sentia uma batata podre.
Nesse ponto da conversa, Diana chama Mário, que se junta a nós e traz seu olhar em relação à adolescência. Pergunto a Mário por que essa é uma fase de tantas discussões entre pais e filhos. “Os pais têm dificuldade de ver os filhos frágeis. Escutá-los pode ser um abismo. Não é qualquer um que aguenta. Por isso, os pais nem terminam de ouvir e já começam a falar, atropelam, por causa da angústia de escutar aquele serzinho dizer algo que eles não estão dando conta. E falam: você precisa levantar cedo, fazer ginástica… ou: você é maravilhoso”, responde.
“Quando você lembra que também se sentiu assim, é diferente”, pondera Mário. E Diana continua: “Quando uma filha ou um filho diz que se sente um lixo e a mãe responde ‘não, você é linda’, ela não está escutando. Se a filha está dizendo que se acha um lixo, é porque é dessa forma que se enxerga”. Diálogos assim, percebo, não promovem uma escuta verdadeira, mas defensiva.
Interferência da autoprojeção na escuta
Mário explica que também é comum termos uma leitura autocentrada, e ilustra: pais que tiveram problemas com drogas são os mais paranoicos de que os filhos se envolvam com drogas. “Estamos num exercício de projeção o tempo todo. Não apenas em relação aos filhos, mas em todas as relações. Conversamos, na verdade, com nós mesmos o tempo todo”, completa.
Entendo que a diferença entre a escuta verdadeira e a defensiva é termos a capacidade de ouvir sem tantas autodefesas. “Se percebemos que a conversa desperta tudo isso em nós, existe a mísera chance de escutar o que o outro está dizendo. Dessa forma, talvez, eles nos ensinem alguma coisa. Não que eles sejam mais sábios, mas as perguntas deles são interessantes”, afirma Mário.
O que ele está dizendo?
Estéfi Machado – prometi que falaria novamente dela – pratica o home office muito antes de isso ter se tornado modalidade comum. Quando Teo tinha 3, ou seja, há 12 anos, ela trabalhava em casa como designer. Sentada, na frente do computador, precisava ficar atenta ao menino que se enroscava entre suas pernas.
Foi para interagir mais com o pequenino que passou a pegar o que tinha à mão para distraí-lo, construindo brinquedos com material simples. O passatempo se transformou em profissão. Estéfi desenvolve conteúdo digital a partir de objetos e acessórios feitos principalmente com papel, papelão, folhas de plantas. Hoje também é colunista do nosso portal.
Quando Teo adolesceu, ela também sentiu o afastamento do menino companheiro. Junto com isso, vieram as primeiras discussões. “Daí, comecei a me colocar no lugar dele, pensar como eu era na juventude, o que gostaria de ter ouvido”, afirma. “Hoje, conto até cem para não ser reativa. Penso: deixa eu tentar acolher o que ele está sentindo, por mais que nessa idade uma espinha seja o fim do mundo. Em vez de argumentar como pode estar preocupado com isso (a espinha) quando tem tanta gente passando fome, tento me transportar, entender. Realmente ter uma espinha no dia de uma festa é ruim. E vou, assim, ajudando-o a organizar as emoções”, exemplifica.
Tem dado certo. Quem quiser pode olhar o Instagram de Estéfi (@blog.estefi.machado), onde o próprio Teo responde a várias questões: o que devo dar de presente para um adolescente? Como os pais devem conversar com os filhos? Vale demais a escuta. E percebi ali um caminho para ter conversas verdadeiras não só com meus filhos, mas com meus pais, irmãos, amigos.
Sim, vai doer
Exercitar essa escuta é um aprendizado para todos nós. Para os pais, talvez isso seja mais desafiador, garanto. Tive uma última entrevista com a também psicóloga Ila Marques Porto Linares, especialista em terapia comportamental. “Quando um jovem se corta, se machuca, tem atitudes extremas, se silencia no quarto, o que está tentando dizer? Sofrimento, angústia? Conversas demandam entrar mais no mundo do outro. Nem sempre é prazeroso”, diz.
Essa dificuldade em ouvir e ter de lidar com algo desconfortável acontece ao longo da nossa vida, independentemente da idade. Estou aprendendo a exercer isso nos meus dois extremos: com os filhos e com pais idosos. Com meus filhos, me aproximo pelos gostos deles e me lembro da jovem que ainda mora
em mim. Clara adora esportes. Convidei-a para correr comigo, e estamos planejando nossa primeira corrida de rua juntas. Com Lucas, que ama desenhar, tenho mostrado meus desenhos e pedido ajuda quando esbarro em algo que não sei fazer.
Com meus pais, bem, essa é uma lição mais dura. Para mim. Acompanhar o final da estrada deles me coloca diante do meu medo de perdê-los. Ouço. Com atenção e abertura. Acolho as falas e as dificuldades deles sem reclamar ou repreendê-los. E depois escrevo sobre a minha dor. Ah, uma boa sugestão: escreva. Isso ajuda demais a perceber os problemas de escuta. E nos ajuda a ter uma visão panorâmica dos acontecimentos. Por fim, preciso acrescentar que escutar a si e ao outro é também um ato de coragem e de amor. Algo que nos faz crescer. Escute.
Por Ana Holanda – revista Vida Simples
Jornalista e escritora que confessa que a escuta dos filhos e dos pais tem se transformado em material rico de escrita.