Abraçar os próprios traumas é importante para superá-los
Trauma, em grego, significa ferida. Experiências que, de tão doloridas ou avassaladoras, se entranham no sistema nervoso autônomo. E, uma vez incrustadas na mente e no corpo, afetam a maneira como nos enxergamos, bem como o mundo, a vida, as nossas relações. Passamos a ver as coisas através de uma lente estilhaçada. Pode imaginar o grau de distorção das imagens e quão penoso é encará-las?
Gabor Maté, médico e terapeuta especializado no tratamento de traumas e vícios, prefere formular que o trauma não é o que acontece com a gente, e sim o que esse evento gera dentro de nós. Por isso, ele evita ranquear dissabores e comparar sofrimentos.
Um desastre, um acidente, uma violência podem ser tão traumatizantes quanto o distanciamento afetivo de uma mãe ou de um pai, ainda que presentes e funcionais. Cada um sabe onde dói. E qual o custo de viver em alta tensão, hipervigilante, como se o perigo à espreita nos impelisse a lutar ou fugir a qualquer minuto.
Revivendo um trauma
Essas impressões perturbadoras gravadas em nosso ser costumam desencadear reações emocionais e físicas desagradáveis – quando não insuportáveis – de modo persistente. O aspecto intrigante é que elas podem ressurgir perante qualquer incidente que se pareça com o evento original que nos feriu ou ainda em face de sensações difusas, as quais evocam passagens enterradas em camadas mais fundas da psique. Nos dois casos, a sensação que temos é de ameaça e desproteção, o que nos leva a reviver a mesma agonia.
Desde a infância, ou mesmo desde a vida intrauterina, carregamos circuitos emocionais arraigados no cérebro que, nesses momentos, assumem o controle, gerando reações intensas e descontroladas de raiva, pavor, vergonha, desconfiança, aversão etc.
Traduzidas por taquicardia, tremedeira, dificuldade para respirar, sudorese… Elas se impõem porque as partes racionais e tranquilizadoras do cérebro se desativam. Ficamos com a sensação de que somos dominados por algo alheio ao nosso querer e parece até que nada mudará a maneira como nos sentimos.
Em busca da restauração
A verdade é que, enquanto arrastamos mazelas não resolvidas, continuamos reféns dos efeitos dos acontecimentos em nós. “Até ser trabalhado, o trauma nos mantém presos ao passado, nos roubando a riqueza do momento presente e limitando quem podemos ser”, escreve Maté no livro O Mito do Normal: Trauma, saúde e cura em um mundo doente (Sextante).
Esse estado prejudica a noção de valor próprio, envenena relacionamentos, compromete a fruição da vida em si, além da nossa inteireza. E, para dar conta dos sentimentos difíceis perpetuados pelo trauma, nós reprimimos nossas emoções ou nos desconectamos delas, congelando também nossa capacidade de sentir as coisas boas da vida.
Daí a tendência a comportamentos escapistas e viciantes ser tão comum em tantos lugares. Se contra os fatos nada podemos fazer, em relação à interioridade, felizmente, temos como nos oferecer os cuidados apropriados. Nesse sentido, vale a pena esmiuçar as marcas que latejam em nosso íntimo.
Método de investigação compassiva
No documentário A Sabedoria do Trauma (disponível em thewisdomoftrauma.com), Gabor Maté explica o método que desenvolveu e batizou de “investigação compassiva”. Segundo ele, a verdade está dentro de cada um e, ao fazer os questionamentos apropriados, o terapeuta ajuda as pessoas a ajustarem o foco de suas percepções, tanto físicas quanto emocionais, restaurando o ser autêntico e saudável que até então não pôde se expressar e, por isso, comprimiu seu potencial de realização.
Ele enfatiza que o objetivo não é se livrar da memória traumática, mas ajudar a pessoa a se expandir para haver espaço para todas as suas emoções, para poder reconhecê-las e acolhê-las com compaixão por si mesma. “O trauma envolve um tremendo gasto de energia para não sentir a dor. À medida que nos curamos, essa mesma energia é liberada para a vida”, ele propõe.
A psicóloga clínica Liana Netto corrobora: “Se não fosse a pressão evolutiva do trauma, seríamos ainda organismos unicelulares. De modo que, diante de situações muito desafiadoras, somos instados a fazer nascer em nós uma força até então desconhecida, que traz o elegante dom de sobreviver. Logo, traumas são também os parteiros das porções mais incríveis de nós”, afirma a docente da Formação da Somatic Experiencing (SE), abordagem naturalista e neurológica para resolver traumas criada pelo psicólogo Peter A. Levine.
O corpo é um aliado
Sergio Oliveira, docente da Formação da Somatic Experiencing (SE) e diretor-presidente da Associação Brasileira do Trauma (ABT), recomenda a quem deseja liberar uma ferida emocional a busca por um profissional que trabalhe especificamente com transtornos de estresse pós-traumático.
É que alguns ferimentos psíquicos ficam enterrados em partes profundas da memória, inacessíveis por meio de palavras e pensamentos. Mas o corpo pode nos dar acesso a elas por meio de suas sensações, como postula Levine, cujo método é adotado pela ABT.
O terapeuta adepto dessa linha conduz seus pacientes com calma e gentileza por um processo denominado renegociação do trauma. Ele os convida a se observar, sentindo as mais ínfimas sensações corporais, emoções e imagens que possam visitá-los.
Assim vão descortinando novos estados internos, como também capacidades compatíveis com quem se tornaram ao longo de suas jornadas até ali. Sentindo-se mais fortes e capazes de enfrentar adversidades, como também aptos a sentir e tolerar sensações que antes os solapavam, vão amainando a tormenta emocional ganhando confiança em si mesmos.
Assim, têm a possibilidade de se perceber e de escolher como querem responder à memória traumática num contexto terapêutico, ou seja, permitindo que haja uma resolução para o episódio, em segurança. “Com muito cuidado, a pessoa vai poder processar o que no passado ela não pôde, de maneira que algo em suspenso se resolve e ela consegue se liberar de um padrão que a prendia, abrindo leques de novas respostas”, diz Oliveira.
Liana cita o exemplo de um homem cujo pai alcoólico foi muito violento em seu desenvolvimento. “Ele se sentia prisioneiro de uma passividade e impotência que impediam que sua competência florescesse, e foi capaz de restaurar potência, vitalidade, criatividade e dignidade, assim também como padrões de relações românticas bem mais saudáveis”, ela conta.
Fluindo novamente
Nem negação, nem identificação. Precisamos, sim, buscar uma narrativa coerente com os recursos de que dispomos hoje, dando repouso às memórias doloridas, o que acontecerá quando nos reconciliarmos com elas. “Essa completude restaura a continuidade entre passado e futuro e incita uma motivada perseverança, um otimismo realista e um movimento para frente na vida”, escreve Levine na obra Trauma e Memória: Cérebro e corpo em busca do passado vivo (Summus Editorial).
À medida que desenvolve consciência corporal, o paciente aumenta a janela de tolerância a estímulos que antes desencadeavam um estado reativo e até agressivo, levando a um fechamento e isolamento em relação aos outros. Aos poucos, ele vai se abrindo e deixando de atuar dessa forma, pois está lidando melhor com as situações e com o tempo de que necessita para processá-las, além de perceber quando está se encaminhando para algum sintoma ou comportamento pouco saudável.
“Creio que isso é uma grande evolução, pois amplia a capacidade de vitalidade, de um sentir mais pleno e de fazer escolhas na própria vida”, afirma o especialista. Ter uma rede de apoio, saiba você, faz toda a diferença nessa reconstrução.
Escrever o trauma
A arte também pode ser uma via de liberação do que nos machuca. Por isso, a escritora Jarid Arraes criou a oficina “Escrever o Trauma”. Desde a época em que cursou Psicologia, ela pesquisa o assunto, principalmente quando o choque se dá na infância.
“Acredito na força da escrita como meio para se trabalhar os próprios traumas e também como poder criativo que retrata nossa sociedade e até mesmo as questões mais difíceis, construindo pontes entre quem escreve e quem lê, porque ler também nos auxilia na autorreflexão e elaboração das nossas dores”, ela expõe.
Jarid, inclusive, impregnou sua literatura com essa questão. Passou tempo considerável lendo livros de profissionais da área da saúde mental e neurologia, autobiografias de vítimas e até ficção, tudo para escrever Corpo Desfeito (Alfaguara), romance que aborda o abuso físico e psicológico de crianças.
“Foram anos intensos, mergulhada numa questão profundamente delicada e que precisa da nossa atenção. O que eu desejo e espero é que esse tema toque mais pessoas, não como vítimas, mas como agentes de compreensão e transformação social”, ela torce. Com cuidado e amor, o que foi estilhaçado pode, sim, retornar à inteireza. Quem disse que não?
Por Raphaela de Campos Mello – revista Vida Simples.
Jornalista. Depois de pesquisar sobre o trauma, sentiu o afago da autocompaixão. E um alívio gentil no peito.