Era um sábado azul de outono. Eu tinha acabado de me mudar de São Paulo para Ubatuba, no Litoral Norte. Morar perto do mar era um sonho antigo, agora real. Dias antes, quando ouvi falar de uma vivência com o “Homem-Peixe”, achei o nome curioso. Na hora, me lembrei do Homem do Fundo do Mar, seriado de TV dos anos 1970, sobre um homem-anfíbio que podia respirar debaixo d’água e tinha membranas entre os dedos das mãos e dos pés.
O anfíbio em questão, contudo, era Henrique Pistilli, conhecido como o Homem-Peixe do Canal OFF, atleta de bodysurf, com um currículo cheio de siglas e consoantes: HSM Speaker, consultor e mentor de lideranças, sócio-fundador da IMUA Escola do Mar, em Fernando de Noronha.
Como “sea coach”, Henrique se dedica a estudar o movimento do mar, as organizações e o ser humano, treinando pessoas para se reconectarem consigo mesmas por meio da respiração e o contato com o oceano. “Quando entramos na água para uma experiência com intenção clara, vemos que nossas reações inconscientes e atitudes no mar refletem o mesmo movimento da vida cotidiana”, defende ele.
O Homem-Peixe viria a Ubatuba para uma Jornada Bodysurf – surf com o corpo – na Casa Eleva, um espaço de autoconhecimento e ioga na Praia do Félix. Como fluir em sincronia com o mar da vida? Como alinhar seu ritmo com os ciclos da natureza? Como construir uma relação saudável com o trabalho? Essas e outras questões fariam parte da imersão de um fim de semana. Propus-me a participar apenas de uma vivência de quatro horas, na praia, no sábado de manhã.
Visita do medo
Estava meio gripada, o dia amanheceu friozinho, até cogitei não ir. Quando cheguei, às 9h, na Praia do Félix, o cardume – grupo de cerca de 12 pessoas, incluindo dois salva-vidas – começava a se reunir em roda. O Homem-Peixe sugeriu uma breve apresentação de cada um, dizendo suas expectativas e medos. Confessei que estava com medo da água gelada e de tomar caldo. Meu segundo receio se repetiu entre os participantes. Ufa! Não era só eu.
Primeira lição: A água é redonda. “Todo ciclo é redondo”, disse Henrique. “Até a água da chuva sobe, cresce, desce. A corrente do mar retorna, vem para a beira e volta. Então, quanto mais a gente tiver movimentos circulares, mais vamos nos integrar.” A fluidez dos golfinhos serve como metáfora: “Entrar na onda, deslizar não só na espuma, mas também na parede dela e sair em segurança”.
Parece simples, mas as dúvidas pipocam. Como não bater a cabeça no chão? Dá para sair da onda sem tomar caldo? E se tomar, como faz? O cardume queria saber. “Ou você vai com tudo ou não vai. Se está indo e no meio tiver dúvida, o caldo é maior. Na vida também”, diz Henrique. Mas, se acontecer, uma informação tranquilizante: um caldo dura, no máximo, cinco segundos. Sabendo disso, o segredo é deixar, literalmente, rolar.
Jacaré, atobá ou golfinho?
Após a introdução, Henrique falou de alguns arquétipos de animais que determinam estágios no bodysurf: tubarão, jacaré, moreia, atobá e golfinho. O tubarão representa segurança e confiança. “Você tem a visão panorâmica, mas precisa observar seus movimentos antes de avançar.” A moreia, a flexibilidade. “Ela se adapta e se movimenta de acordo com o mar.”
O arquétipo do jacaré traz força e energia. O atobá, por sua vez, é um grande surfista. “Ele voa alto, enxerga na profundidade, mergulha como uma flecha, pega o alimento e voa”, descreve. Esse arquétipo destaca agilidade e a habilidade de rodopiar e tirar mais o corpo da água nas manobras.
Finalmente, o golfinho representa criatividade e brincadeira. “É quando você começa a acessar o seu flow, pois já domina os estágios anteriores e se sente à vontade para explorar novas interações com o mar.” Na analogia com a vida, é quando paramos de nadar contra a maré e entramos no flow.
“Fluindo no mar, temos um flash dos nossos talentos e paixões. Que lugar é esse na sua vida, em que o tempo para, seu olho brilha, você dá o seu melhor e o mundo reconhece? O mar é o lugar para entrar em contato com essa sua força interna.”
Susto e redescoberta
Ok, era chegada a hora de cair na água. Para os principiantes no bodysurf, como eu, uma dica importante: ao furar a onda de cabeça, é preciso esticar os braços à frente para se proteger, e as pernas para trás, para fluir. “É preciso respeitar os próprios limites e avançar gradualmente”, alerta Henrique.
Ao entrar na água, bateu o medo de que os meus colegas caíssem sobre mim. Busquei me afastar, criando espaço. Furei algumas ondas ao lado de Henrique e fui me animando, “aceitando o convite do mar”, como ele diz. No entanto, me empolguei, me distraí, e numa onda maior me esqueci de esticar os braços e bati a cabeça. Foi uma batidinha leve, mas o susto, grande.
Atma, “sea coach” e parceira de Henrique no retiro, além de professora de yoga e massoterapeuta, veio me socorrer. Falei que estava tudo bem, saí da água e, sentada na areia, me veio uma emoção imensa. Comecei a chorar. Há menos de dois anos, tive a remissão de um câncer de mama, e percebi, ali, que o medo da morte estava ainda muito presente. Refletindo, depois, saquei também que talvez não estivesse tão no flow como pensava. Mesmo morando na praia, sigo tomando caldos de tarefas que me sobrecarregam. Respirei fundo e me acalmei.
É importante respirar
Quando nos prendemos em situações de pânico ou ansiedade, segundo o coach, a respiração se torna curta, utilizando apenas 10% da capacidade pulmonar. Isso afeta negativamente o metabolismo. Por isso, é tão importante buscar o estado de presença, desviando a mente do passado e do futuro.
Nos esquecemos facilmente, mas a respiração é um movimento arquetípico que rege todos os ciclos de vida, pois todos eles passam por expansão e contração. “Dê um passo atrás, respire, recolha, pause, expanda de novo, volte, reflita, esse é o processo”, reforça o coach.
Depois do lanche, Atma me propôs um relaxamento. Ali, onde nos espraiamos, não havia ondas, apenas o balanço do mar e o horizonte. Ela pediu que eu boiasse e, com gentileza, me acolheu. Percebi que precisava trabalhar mais esse fluxo, confiar e me entregar, sem tentar controlar as coisas. Desde aquele dia, venho avançando na imensidão verde-azulada, entre o jacaré e a moreia – e, quem sabe, uma futura mulher-sereia?
Por Rosane Queiroz – revista Vida Simples
Jornalista. Apaixonada pelo mar, crê que a vida vem em ondas e que o sol e o sal têm poder de cura.