Sempre que chega dezembro, faço um balanço da minha própria vida. Das coisas que passaram naquele ano, dos aprendizados, dos sonhos realizados, dos desafios, do que ainda espero do porvir. Também escrevo uma carta para mim mesma, abraçando a pessoa que sou, a que fui e aquela que ainda desejo me tornar.
Em seguida, guardo a correspondência muito bem guardada e só a releio no fim do próximo ano, quando terei novo olhar. Não há cobranças nem jeito certo ou errado nesse meu pequeno ritual: é só uma forma de elaborar cada passagem da minha vida. E conseguir identificar com mais clareza aquilo que preciso deixar ir, abrindo espaço para os novos começos que se apresentam diante da esperança de mais 365 dias a serem vividos.
Encerramento de ciclos antigos
Pode até parecer bobagem, uma vez que a passagem de um ano para o outro é, para muitas pessoas, apenas uma mudança comum entre os dias. Mas acredito que certos movimentos podem ser boas oportunidades para compreendermos a importância de encerrar antigos ciclos e então nos preparar para inaugurar outros.
Afinal de contas, assim como acontece com a natureza e suas estações, cada etapa é fundamental para o nosso desabrochar. De maneira que colocar pontos finais e aceitar o término de situações e relações é essencial para nos abrir caminhos e possibilidades diferentes no agora.
Aceitando o fim
Mas, convenhamos, nem sempre é fácil depurar esses processos. Às vezes não percebemos a chegada de um fim e ficamos ali, na corda bamba da dúvida e da falta de jeito. Em outras vezes até percebemos, mas temos dificuldades em aceitá-lo, por apego ou medo de enfrentar as emoções. Há ainda casos em que os ciclos se repetem, mudando apenas os personagens, até aprendermos algo com eles, mesmo sendo tão chato passar por reprises.
No entanto, é possível amadurecer com essas metamorfoses. E vivenciar os encerramentos de uma maneira leve, sem nos sentirmos culpados ou desconfortáveis conosco. A grande questão é: como fazemos isso? Como aceitar o fim daqueles ciclos mais difíceis, que nos acompanham há tanto tempo?
Todo carnaval tem seu fim
Um primeiro passo para a aceitação dos fins vem da real compreensão de que tudo na vida tem sua finitude. Inclusive nós mesmos: a única certeza que temos é a de que vamos morrer um dia e, por isso, é tão importante nos dedicarmos ao momento presente, aceitando que estamos em constante mudança. Logo, em algum momento, algumas situações vão deixar de nos caber.
“Compreendo os ciclos como um modo de organização das etapas da vida humana. Um fim, portanto, seria um processo de transformação dessa organização para que outro modo de existência seja possível”, explica Mylla Christie Bueno de Souza, psicóloga, especialista em terapia cognitivo-comportamental.
Segundo ela, cada um tem uma maneira de identificar a necessidade de finalizar seus próprios ciclos. Sabe aquela sensação esquisita que paira dentro de nós, dizendo que algo não está bom? E ainda as constantes brigas e os eternos desconfortos dentro de algumas relações? Podem ser sinais sutis, nos mostrando que é chegada a hora de dar alguns bastas. Perceber esses indícios vai muito de ouvir o coração, sempre equilibrando com a razão.
Recomeçando diante do desconhecido
Por outro lado, saber de tudo isso não muda a realidade sobre a dor e o incômodo que alguns encerramentos carregam e apresentam para nós. “É comum que o processo de encerrar ciclos cause algum nível de sofrimento, pois normalmente vem acompanhado de mudanças e de uma sensação de falta de controle diante da imprevisibilidade do futuro”, pontua Mylla Christie Bueno de Souza.
É por isso que, muitas vezes, postergamos situações por tanto tempo: de tão apegados a algumas realidades, adquirimos o danado do medo de nos arrepender. E de sucumbir sem aquilo que nos é costumeiro. E se eu terminar este relacionamento e não encontrar mais ninguém para amar? E se eu sair do trabalho para viver meu sonho e ele não se realizar? E se eu deixar a cidade em que nasci e não encontrar oportunidades novas em um novo lugar?
Diante de tantos “e se”, tendemos a preferir o que é mais fácil, mais cômodo, e nos adiamos mais uma vez. Pois é preciso muita coragem, autoconhecimento e gentileza com nós mesmos para abandonar antigas certezas e recomeçar diante do desconhecido. “Muitas pessoas tentam fugir a todo custo da angústia que esse momento convoca”, observa.
Acolha suas emoções
Segundo Mylla, acolher emoções desconfortáveis, bem típicas das finalizações, como o medo, a tristeza, a preocupação e a solidão, pode ser complicado no início. “Mas é importante compreendê-las como parte essencial do desenvolvimento humano, como bússolas que nos direcionam para uma existência mais próxima dos valores que consideramos importantes na nossa trajetória”, completa.
Acolhendo essas emoções, vamos percebendo aos pouquinhos que elas também fazem parte de nós e é normal senti-las, ainda mais diante de algo que nos aflige ou paralisa. E, quanto mais as percebemos, permitindo que cada uma cumpra seu papel, mais perto ficamos da aceitação. E também de outros sentidos, como o alívio, a leveza e o desprendimento esperançoso diante do fim.
É como aquela respiração profunda, que nos tira todo o peso dos ombros depois de um dia cansativo. “Insistir em ciclos que você já identificou que precisam ser encerrados pode ser um gesto que alonga ainda mais o sofrimento, pois, por mais que tenha um custo decidir finalizar no agora, pode doer ainda mais, deixar para depois”, alerta Mylla.
Acabou, e agora?
Até aqui, falamos tanto desses ciclos que nós precisamos fechar, partindo da nossa vontade, percepção ou necessidade. Mas há também aqueles que se findam sozinhos ou que são encerrados por outras pessoas, sem que possamos fazer nada para impedi-los. Tais episódios nos deixam poucas alternativas, a não ser nos conformar e seguir em frente, ainda que aquilo incomode por bastante tempo.
A verdade é que atravessá-los pode ser até mais difícil do que decidir pelo fim, uma vez que, quando a outra pessoa é quem termina um relacionamento, ela já está elaborando aquilo há mais tempo. E, quando chegamos a saber, somos surpreendidos e precisamos, sozinhos e de uma hora para outra, aprender a lidar com essa nova situação.
“Quando se encerra um ciclo, quem permanece? Eu permaneço. E tenho a oportunidade de olhar para a maneira como eu me acompanho. E me acompanhar cada vez melhor”, considera a psicóloga clínica Luiza Leão. Ela também é escritora e pesquisadora da intuição e suas implicações no campo da arte. E, inspirada por seus estudos e conhecimentos, Luiza criou a página @sagradaintuicao, na qual compartilha reflexões que nos ajudam a elaborar melhor nossas emoções.
Ela me explicou também que, quanto mais nos desesperamos diante de um término, menor é a qualidade de nossa própria companhia. Ou seja: mais difícil é permanecer com nós mesmos. “Eu preciso sempre me perguntar: qual a melhor maneira de me acompanhar nesse processo, nesse encerramento de ciclo? Do que eu preciso?”, pondera. E completa: “quando eu percebo que as coisas mudam, que elas fecham, eu não sou mais a mesma, eu vou mudar também. Mas eu permaneço, eu sou um lugar confiável para mim”.
Há luz no fim do ciclo
Foi mais ou menos assim que aconteceu com a Renata Andrade. Ela é artista plástica e, em 2021, no meio da pandemia, foi convidada a fechar alguns ciclos. O primeiro deles foi a decisão pelo término de um relacionamento que já a acompanhava havia nove anos. Renata não estava feliz, sentia-se perdida dentro da relação e, muitas vezes, via-se anulando as próprias vontades só para permanecer ali.
Depois de vários adiamentos e inúmeras tentativas de mudança e de “fazer dar certo”, ela percebeu que não se pode decidir como o outro vai se comportar com a gente. Mas podemos optar por não permanecer ao lado do que nos fere. “Foi difícil, ainda mais porque, na época, morávamos na mesma casa e em outro país, fomos juntos para lá e construímos nossa nova vida juntos. Mas eu não me enxergava mais naquela relação, por diversos motivos”, explica.
Mais fácil enxergar as oportunidades
Adiante, já com a vida restabelecida, Renata Andrade passou por mais uma ruptura. Dessa vez, uma que não foi escolhida por ela: a galeria de arte onde trabalhava, em Paris, precisou fechar as portas. E, sem outras alternativas de renda, a artista teve de voltar para o Brasil. “Além da tristeza, eu também precisei lidar com a frustração e a sensação de fracasso”, conta. Levou um tempo para Renata entender que tudo o que havia acontecido era uma preparação para um destino também bonito e cheio de realizações.
“De volta ao Brasil, eu me reconheci em minha própria companhia. Passei alguns meses quieta, assimilando tudo o que tinha acontecido e pensando no que poderia fazer a partir de então.” Foi aí que, entregue à retomada que se impunha, ela resgatou um antigo sonho: de maneira tímida, montou um pequeno ateliê em um cômodo vazio na casa dos pais. Seu ninho nessa transição.
Ali, voltou a trabalhar, dessa vez de forma independente e criando o que condizia mais com seu coração. Também redescobriu o amor, em uma relação baseada no respeito e na troca. “E tudo isso só aconteceu porque eu me dei a chance de encontrar uma luz no fim dos meus ciclos”, conclui Renata.
Uma vez iluminados por tais perspectivas, fica mais fácil enxergar as oportunidades nos aguardando depois do fim. Tudo porque tivemos coragem e força de olhar para nós e fazer uma escolha, assumindo suas consequências, nos abrindo para as incertezas e prestando mais atenção à nossa intuição e ao que sentimos.
Por onde eu recomeço?
“Muitas vezes, a gente não dá conta de encerrar ciclos porque racionalizamos as nossas sensações, a nossa intuição e nossa sabedoria instintiva sobre determinado evento”, acrescenta Luiza Leão. E ficamos ali, dando justificativas, encontrando desculpas, postergando nossas decisões e abafando nosso tino.
Quando isso acontece, a psicóloga sugere a lembrança de que há vida além daquilo que já vivemos. E, a partir de um encerramento, outras forças que poderiam estar adormecidas ou escondidas em nós têm a chance de se revelar.
“Entender que eu continuo aqui, respirando. E ir semeando outras frentes de vida, que vão me mostrando que é possível viver de outras formas muito potentes quando a gente encerra aquele ciclo”, afirma Luiza Leão. E, assim, estamos, enfim, prontos para recomeçar. “Existe vida para além desse final e, quando eu permaneço provendo essa vida para mim, é um crescimento. É muito bom poder contar consigo”, conclui.
Encontrando conforto na nova fase
Contando cada vez mais com nós mesmos, paramos de depender tanto de influências externas e conseguimos escolher nossos novos caminhos, aprendendo também a sustentar as incertezas. “Nastassja Martin, uma escritora e antropóloga francesa, afirma em seu livro Escuteas Feras, que a incerteza é uma promessa de vida. Recomeçar é assumir riscos, é reconhecer que o controle das situações é uma ficção”, considera Mylla.
Ela disse, ainda, que manter uma postura compassiva e gentil com nós mesmos, enquanto nos organizamos diante do novo, é uma das coisas mais singelas dos reinícios. “Fortalecer sua rede de apoio, propor-se a viver experiências novas, manter ou criar hábitos saudáveis, são outros jeitos de achar conforto nessa fase sensível”, orienta.
Parar de nos julgar, de nos criticar, de achar que deveríamos estar em outro lugar, voltar para as coisas que amamos. Tudo isso, é uma maneira mais amorosa de nos acompanhar diante do novo. “Isso faz toda a diferença, porque aí eu posso até atravessar a dor, mas de uma maneira mais tranquila, sabendo que, ali na frente, as coisas tendem a melhorar”, encoraja Luiza Leão.
E, agora que chegamos até aqui, eu gostaria de te convidar a recomeçar a partir do encerramento desta matéria. Qual é a providência mais gentil que você pode tomar hoje mesmo, em nome do seu vir a ser?Neste e em outros finais, lembremos que tudo aquilo que morre aduba o que irá nascer. Bom reinício de ano para você.
Por Débora Gomes – revista Vida Simples
Jornalista. Encerrou alguns ciclosneste ano. E se orgulha de olhar para cada um deles e perceber o quanto aprendeu e cresceu.