Adolescente, a atriz e dramaturga Isabel Teixeira experimentou ficar um mês sem pisar na rua durante as férias de julho de 1989. Era época de vacas magras, e sua mãe, também atriz, avisou que elas não poderiam viajar. Isabel, que sempre gostou de ficar em casa, celebrou a notícia. Todo dia repetia a mesma rotina: acordar, tomar banho, vestir seu melhor pijama e fazer algo de que gostava, incluindo ler, escutar música e assistir a filmes.
Hoje ela vê que começava ali a construção do seu “quarto primordial”, um espaço seguro, dentro de si, que a acompanha em todos os outros lugares. É desse espaço interno, de conhecimento íntimo e conforto, que ela tira forças para ocupar o lado de fora com mais autenticidade. “A casa é o lugar onde nos acolhemos. Isso dá muita força de modo a ir para o mundo”, diz.
Isabel continua fazendo retiros em casa para desfrutar da solitude criativa e se encontrar consigo. A partir dessa reconexão, ela pode, enfim, oferecer o que possui de melhor. “O reconhecimento das outras pessoas é quase uma consequência desse autorreconhecimento”, reflete a atriz, que já venceu duas vezes o prêmio Shell de Teatro e ganhou dois troféus da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), um deles por sua marcante atuação como Maria Bruaca na novela Pantanal.
O quarto primordial de Isabel nos lembra da importância de regressar à casa quando perdemos o rumo de nós mesmos. Em um mundo governado pela tecnologia e que acelera o passo cotidiano, o fio que nos leva de volta a nós parece escapar constantemente. Os apelos são muitos e incessantes: é preciso chegar mais longe, ter mais, não ficar de fora e estar sempre disponível. Afinal, por que, em meio à correria das tarefas diárias e das notificações, acabamos nos anestesiando de nós? E como despertar desse adormecimento?
Fator tecnologia
Daniela Arrais, jornalista e sócia da Contente, plataforma para uma vida digital mais consciente, vê o cansaço em tentar dar conta de tudo e o medo do futuro como as raízes desse comportamento. Em um mundo imerso em múltiplas crises e repleto de instabilidades, sentir pode ser doloroso demais, e qualquer oportunidade de distração se torna bem-vinda.
“O problema é que essa anestesia só vai nos deixar mais desesperançosos e cansados. Precisamos nos conectar com o que dói, inclusive para entender como é que eu cuido de mim e, depois, do outro e do mundo”, elabora, confiante na mudança.
Fazer detox digital, ou seja, ficar um período sem celular ou fora das redes sociais, é recomendável. Você pode determinar horários para estar offline, de manhãzinha ou antes de dormir; em eventos especiais, como um almoço em família ou um jantar entre amigos; e também nos momentos de solitude, a fim de ouvir os ruídos internos.
Mantendo a conexão
A conexão conosco deve ser mantida mesmo online. Daniela sugere usar a internet como uma bússola das nossas emoções. Se eu sinto inveja ao ver um post sobre a conquista de alguém, posso me questionar se isso vem da minha necessidade de terminar um projeto que tenho adiado, por exemplo. A partir dessa percepção, é mais fácil entender quando e de que forma posso atender a essa necessidade sem me atropelar.
Nas redes sociais, predomina uma narrativa vitoriosa da vida, mas é preciso estar claro que isso não passa de um recorte. “Quando estamos olhando muito para fora, nos comparando demais e insatisfeitos com a nossa vida, está faltando um olhar de apreciação para a gente”, diz a comunicadora.
Como antídoto, ela recomenda escrever sobre o que nos aconteceu de bom recentemente. Outra forma é apelar a amigos e à psicoterapia para identificar as origens da desconexão e retomar a rota de acesso ao próprio centro.
A natureza em nós
A partir da cisão entre corpo e mente, com o dualismo expresso na filosofia de René Descartes, no século 18, começamos a nos distanciar do nosso mundo interno. “Deixamos de priorizar a conexão com o Universo e aceitamos a ruptura com a natureza”, resume a psicóloga e terapeuta ayurvédica Mônica Machado.
Nessa tendência racionalista, o ser humano parou de se espelhar nos ciclos naturais e no sobrenatural, e passou a mirar na tecnologia, reflete o filósofo indígena e doutor em antropologia social Gersem Baniwa. Passamos a sentir inveja da máquina, que não precisa descansar, não adoece nem se entristece. É preciso humildade para reconhecer nossas limitações bem como as dos recursos naturais, reflete ele. Só assim para nos conectarmos com a nossa humanidade e cuidarmos melhor do planeta.
A natureza, aliás, é uma grande guardiã do caminho de reconexão porque, ao mesmo tempo em que está fora, também vive dentro. “O ser humano se distanciou tanto ao ponto de se tornar hostil à natureza, ao mundo real, à vida”, lamenta Baniwa. “Nosso desafio é voltar a nos sentir parte desse mundo, dessa natureza. Se somos parte dele, então o mundo é a nossa casa, aliás, a única que temos. É assim que os povos indígenas ensinam”, diz. Ao alimentar a presença, sem nos iludir com a grama do vizinho ou a existência de um planeta B, valorizamos o que está ao nosso redor, aqui e agora, e, por consequência, nos valorizamos também.
Pausa e auto-observação
Uma enorme árvore no caminho que faz para levar seu filho à escola chama a atenção de Elisama Santos. Se em algumas épocas do ano ela aparece vestida de flores e folhas, em outras, está completamente nua. Entregue aos desígnios das leis naturais.
“Querer estar o tempo inteiro só nas flores, esplendorosos, é muito cruel conosco porque nós somos natureza e temos ciclos como todos os seres”, observa a comunicadora, especialista em saúde mental e escritora best-seller.
Nosso equilíbrio consiste em combinar momentos mais para fora e de maior recolhimento, como as árvores fazem ao concentrar energia nas raízes no inverno e, a partir dessa força concentrada, conseguir se expandir, florescendo na primavera. Mas, diante de tantos chamados externos, seria ingênuo acreditar que esse movimento aconteceria naturalmente.
O exercício de pausa e auto-observação precisa ser feito de forma intencional, consciente e em perspectiva, recomenda Elisama. É como estar em um carro a 120km/h: do lado de dentro, corremos o risco de não reparar na tremenda velocidade. “Mas, se você sai e vê o carro passando, vai se surpreender com o quão rápido ele estava e, finalmente, poder se questionar: é nesse ritmo que quero seguir?”.
Pessoas inteiras
Quando nossa respiração encurta e sentimos necessidade de falar sem pausas, respondendo de forma automática ou tentando antecipar acontecimentos, é sinal de que o contato com o nosso espaço interno está mais escasso. “Fazer respirações profundas e nos conectar com nosso centro desaceleram a mente e permitem que ela entre em sintonia com o corpo”, sugere Mônica.
A prática de mindfulness e de meditação, que engloba prestar atenção na respiração e nos pensamentos, são importantes para juntar nossos pedaços. “Somos pessoas inteiras e cada pedacinho do nosso corpo está atrelado a tudo. Somos um microcosmo ligado ao macrocosmo”, diz a psicóloga.
Danilo Santaella, professor de yoga e pós-doutor em neurociência, ressalta o fato de que nós vestimos várias máscaras – de trabalhadores, mães, pais, filhos –, mas resgata que a nossa essência está para além de todo esse desempenho social.
“No mundo interno, acessamos o que é realmente importante às nossas necessidades e felicidade. Só assim podemos ser melhores para nós e para os outros”, diz. “Quando nos damos o devido valor e atenção, a gente consegue se oferecer de forma genuína, e a retribuição é espontânea”, acrescenta, lembrando que, na filosofia do yoga, a retribuição à não violência é a mansidão; ao desapego, a abundância; e, à verdade, que a sua palavra tem poder. “As portas vão se abrindo à medida que você se interioriza.”
Pertencer nos ancora
Adoecida por quatro anos, com mais de 11 diagnósticos clínicos de comorbidades, Rita Araújo não aceitava errar ou não ser reconhecida como achava que merecia. “Esse é o tipo de presa fácil para o sistema. Encontramos na vida adormecida e anestesiada que nos oferecem um lugar para nos esconder de nós mesmos”, observa.
Por isso, para além de culpar o tempo em que vivemos, ela acredita que é preciso tomar para si a responsabilidade pela nossa reconexão. Hoje, após vencer a doença, Rita trabalha como terapeuta energética compartilhando meios de desapegar dos padrões internos que ressoam com o externo. “É a única forma de virar o jogo.”
A reconexão conosco, porém, não implica necessariamente se isolar, defende Rita. Voltar-se para si pode ser algo natural e simples: com pausas, um maior contato com o silêncio, com o vazio existencial e o tédio, incluindo passar um tempo desocupado e sem buscar distrações.
A cisão entre os mundos interno e externo é incomum a algumas culturas não ocidentais, acrescenta Bia Machado, doutora em filosofia da educação. Nesses saberes milenares, o que está fora ressoa dentro por meio da analogia. Por exemplo: podemos ter um deserto dentro de nós nos dias preguiçosos ou tristes. Em outros, a Floresta Amazônica toma conta de cada poro, e nosso corpo pulsa vida e criação.
“Cada contato com o mundo é uma possibilidade de trabalho interior, uma maneira de olhar para si e se conhecer, de não ficar passivo diante do que impressiona”, diz. Bia aponta a arte como uma das formas de dar sentido e expressar o que nos afeta. “A interioridade não é uma coisa, é um eterno ‘pode ser’, um lugar de construção.”
Reconectar é se aproximar do futuro
Na filosofia indígena, explica Almires Machado, advogado da etnia guarani-terena e doutor em antropologia social, a reconexão reside em se aproximar do futuro por meio da ancestralidade. “É largar a selva de pedra e vir para um espaço como esse”, diz, sobre a sua aldeia. “E, então, correr pelo terreiro, brincar com as crianças, rir com elas, chorar com elas, suar com elas, banhar-se com elas no igarapé e contar histórias”, descreve.
“Assim, você se reconectaria com seus símbolos, sua identidade, com o seu eu. Voltaria a ver a importância daquilo que, lá no passado, foi a construção da sua pessoa: como tu foi construído? O que tem significado para ti? Quais são os teus valores?”, questiona. “Sabendo do meu lugar de pertencimento e voltando a ele, vou estar de fato me conectando com aquilo que chamamos de fluidos ou energias que fazem sentido tanto para mim quanto para manter a vida do planeta, de algum modo, ainda respirável.”
Estar perto é chegar longe
“Você é o único representante do seu sonho na face da Terra”: a frase do rapper, cantor e apresentador Emicida ressoa fundo em Elisama. “Como eu vou representar o meu sonho, cuidar e defendê-lo nas minhas relações, na minha existência e nas minhas escolhas se eu nem sei que sonho é esse? Se não me escuto mais nem tenho tempo de ser minha amiga?”, questiona.
Chamando a gente para conversar e nos dando colo, podemos reconhecer qualidades, limites, desejos e necessidades que nos pertencem. Longe dos ruídos externos, também podemos nos dar a chance de nos reabastecer internamente e voltar com mais disposição para o encontro com o outro.
Sem tantas expectativas e cobranças. Quando nos escutamos, nos cuidamos e nos priorizamos, fortalecemos o vínculo conosco e nosso coração se expande. Assim, ganhamos espaço para agir com mais empatia e compaixão. “Para mudar o mundo, primeiro precisamos mudar o nosso mundo interno”, lembra Daniela.
Quanto maior as raízes das árvores, maior a sua copa, mais belas as suas flores, deliciosos os seus frutos, e ampla a comunidade criada ao seu redor. “E quanto mais fundo formos, mais longe teremos ido”, sentencia Mônica.
Portanto, é, sim, possível ir mais longe chegando mais perto. E mais: ao voltar para casa, mudamos não apenas a nós mesmos e a qualidade das nossas relações. Esse movimento, que vem lá das funduras, nos fortalece a servir no mundo, como fontes de cura para nós, os demais e para a inconsequente ocupação humana sobre a Terra. Você aceita esse pacto?
Por Martina Medina – revista Vida Simples
Jornalista. Um dos seus sonhos de infância era ter um quarto azul onde pudesse se escutar melhor. Hoje esse refúgio mora dentro.