Quem tem filho, conviveu ou convive com criança sabe. Há uma fase do desenvolvimento em que os pequenos passam a recusar todo e qualquer tipo de ajuda. Alguns especialistas referem-se a esse período como a fase do “não”. A criança deseja e luta veementemente para fazer tudo sozinha, tomar banho, colocar a meia, montar o brinquedo novo, cheia de certeza, desafiando a paciência dos responsáveis e descortinando um período bonito e necessário a todos nós: o início da construção da personalidade e autonomia.
Ocorre que, em algum momento (ou momentos) da nossa estrada evolutiva, espera-se que nos demos conta de que a vida é muito mais complexa, difícil e imprevisível do que gostaria a nossa meninice. E o próximo degrau do crescimento, paradoxalmente à imagem do adulto autossuficiente e bem-resolvido, será justamente pedir e aceitar ajuda, quantas vezes forem necessárias. Duas coisas que no universo individual denotam amadurecimento.
Entendendo o momento de pedir ajuda
No espectro social, pedir e receber colo é um marco civilizatório. Há muitos anos, a antropóloga norte-americana Margaret Mead (1901-1978), à pergunta de um de seus alunos sobre qual seria o primeiro sinal de agrupamento humanizado e organizado no mundo, refletiu e respondeu: “um fêmur de 15 mil anos encontrado em um sítio arqueológico com marcas únicas de fratura e cura”.
A resposta surpreendeu a maioria, que esperava por um achado de manufatura ou algo do tipo. Mas o que Margaret disse à academia naquela ocasião é que há milênios e milênios alguém havia se machucado feio, pedido ajuda, recebido cuidados e vivenciado a compaixão e a solidariedade.
Assim ela contrariava a ideia da eugenia natural, que manda deixar para trás o mais frágil e abatido, e exaltava o forte vínculo que até hoje construímos com base no que pode ser o epicentro das experiências humanas mais transformadoras e significativas: a vulnerabilidade. Uma vez exposta e assistida, ela pode ser compreendida como um avanço humano, e não como retrocesso.
“Pedir ajuda é, sem dúvida, algo que nos insere no tecido social, pois, como diz o psicanalista Jacques Lacan (1901-1981), somos todos fundados na falta. Não existe ninguém absolutamente autônomo”, lembra o psiquiatra e psicanalista clínico Durval Mazzei, cofundador do Espaço Lacaniano do Instituto Sede Sapientiae, em São Paulo.
Nossos rótulos de estimação
Mas por que, então, pedir auxílio continua complicado? Por que há pessoas que parecem estagnadas na fase infantil do “não”? Segundo Durval, essa resistência reside, muitas vezes, em crenças estruturantes que abraçamos ao longo da vida. Andaimes que sustentam nossa identidade, a forma como nos construímos, percebemos e nos preservamos no mundo e sob o olhar do outro.
“Romper essa moldura é duro porque o edifício corre o risco de desabar, e aí seremos expulsos de um lugar seguro, mesmo quando incômodo”. E trilhar novas maneiras de ser, deixando de lado o que nos é familiar, dá medo. Precisa disposição e coragem.
Para exemplificar, Durval conta sobre quem busca ajuda na clínica, absolutamente aderente ao diagnóstico que carrega no peito. “Vira quase uma afronta dizer a quem se entende bipolar, por exemplo, que talvez a coisa não seja assim. É como se lhe arrancassem o sobrenome. Não que o diagnóstico não seja importante, mas na psicanálise ele existe para ser repensado e discutido, e não carimbado”, diz Durval. Ou seja, pedir ajuda pode significar rever algo que tem função, que controla, acomoda e assenta.
Na noção clássica freudiana, o apego inconsciente ao diagnóstico, ou sintoma, acontece para satisfazer algo de que se tem vergonha, algo que, no fundo, é recusado. Funciona como um escudo de estimação, uma justificativa para o julgamento alheio.
Se pelo relato de Durval, que tem 40 anos de clínica, já é desafiador abrir mão desse “álibi” na relação profissional com o analista, o que dirá com amigos, colegas do trabalho ou familiares, quando há tantos interesses, sentenças éticas, morais e afeto em jogo?
Um tesouro de escuta
A pergunta vale para refletir sobre por que, em 2022, 3,4 milhões de brasileiros de todas as regiões do país, querendo ajuda, preferiram discar o 188 e conversar com um completo desconhecido do outro lado da linha a procurar alguém mais próximo, do círculo íntimo ou social. É uma incrível média de 10 mil ligações por dia! Somente no terceiro trimestre do ano passado, foram quase 700 mil chamadas.
Os números são do Centro de Valorização da Vida, o CVV, que presta serviço voluntário e gratuito de prevenção ao suicídio e apoio emocional a todos que querem conversar, sob total sigilo. O receio do julgamento alheio, de gente próxima, é, portanto, um pilar da instituição.
Escuta sem julgamento
O anonimato garantido e a escuta empática de quem atende às ligações, além do serviço gratuito e 24h, são o segredo do sucesso da contribuição do CVV à sociedade, de pé há mais de 60 anos. “Nós não damos conselhos, não indicamos caminhos, não fazemos juízo de valor e não minimizamos ou valorizamos o sofrimento de quem liga. A gente só escuta e acolhe. Esse é o tesouro que exercitamos no CVV e queremos compartilhar com a sociedade”, diz Carlos Correa, voluntário desde 1992.
A escuta que não julga e não projeta é mesmo algo quase extraterrestre, uma joia rara. “Simplesmente não fomos educados assim. Nós, voluntários do CVV, recebemos treinamento e acompanhamento contínuo para isso”, conta Carlos.
Soa como o acolhimento do analista, que deve ser livre de qualquer cobiça ou interesse por quem se deita no divã. Mas a grande diferença é que, nesse caso, existe um trabalho profissional por trás e o paciente volta à análise periodicamente. No CVV, não. As ligações rodam em um sistema automatizado, que distribui as chamadas de forma aleatória, e não necessariamente quem liga mais de uma vez conversará com o mesmo atendente. “Não somos profissionais da saúde mental. Somos interlocutores que acolhem as pessoas no pico da emoção”, esclarece Carlos.
Isso faz toda a diferença. A escuta sem rosto e 24 horas cria um ambiente seguro e favorável para que a pessoa fale, dê vazão à angústia em seu ápice, mesmo quando são três da madrugada. “Em muitos casos, só ao falar e expor o que incomoda, a pessoa sozinha vai percebendo possíveis caminhos. É como se ela esvaziasse um copo cheio e aliviasse a gota d’água, que pode transbordar a qualquer momento e com qualquer um”.
Quem fala se despressuriza
A fala descomprime e organiza subjetividades. Traz clareza. Mas, para que ela ocorra, é preciso normalizar as situações-problema. Talvez um dos ambientes mais hostis a isso seja o corporativo. “As pessoas têm medo de pedir ajuda, falar de desconfortos no ambiente de trabalho, porque acham que demonstrar fragilidade pode comprometer a reputação, o sustento. Mas, ao abafar a emoção, a coisa derrama e vira caso de emergência, como o burnout, muito presente hoje no consultório”, conta Estevam Quintanilha, psicólogo do hospital Francisca Júlia, em São José dos Campos (SP), referência em saúde mental na rede SUS.
É quando o fêmur quebra. O trabalho fermenta o medo universal de não pertencer, criando craques em dar mais respostas e fazer menos perguntas, em fingir que está tudo bem, com medo do erro, em permanecer calado, enrijecido. “Mas a empresa que quer crescer já se deu conta de que, além do capital financeiro, material e intelectual, precisa investir também no capital psicológico e criativo do time, porque ninguém cresce e inova sozinho”, diz Patricia Ansarah, psicóloga e fundadora do Instituto Internacional de Segurança Psicológica (IISP), organização que vem apoiando empresas na construção de um ambiente psicologicamente seguro para que os profissionais falem, peçam ajuda, exponham ideias e desconfortos, sem ter medo ou vergonha disso.
Quanto mais envelhecemos, mais precisamos de ajuda
Seja no trabalho ou na vida pessoal, a saída é se dar conta, considerar a cobiça e os interesses particulares que temos uns para com os outros, porque eles sempre existirão, e relativizar julgamentos alheios e crenças que nutrimos a nosso respeito. É um exercício corajoso e difícil, para a vida toda, não há como negar. Entretanto, a curiosidade pelas nuances da condição humana leva ao autoconhecimento e resulta em relações mais autênticas e transformadoras. Dignas de confiança.
Diferentemente da figura do papai-sabe-tudo, quanto mais a gente cresce e envelhece, mais colo a gente pede. Senão estaremos fadados à repetição, como a imagem do cachorro que corre atrás do rabo. “É só por meio do olhar do outro que conseguimos desmontar nossos autoenganos e certezas infantis. Pedir ajuda é crescer. Não existe ninguém absolutamente autônomo e independente”, reforça Durval.
Não há por que se encabular. Segundo a pesquisadora e best-seller Brené Brown, a vergonha é uma emoção universal. E que precisa ser melhor compreendida. “Se encontrarmos a coragem para falar sobre ela e a compaixão para ouvir, poderemos mudar a maneira como vivemos”, acredita.
Por Vanessa Costa – revista Vida Simples
Jornalista e escritora. Ela vem aprendendo a pedir e aceitar ajuda.