Criatividade. Usei esta palavra para buscar a relevância do tema. 125 milhões de resultados. Passo os olhos e encontro definições a partir de estudiosos diversos, mas a maior oferta são os cursos para ser mais criativo, maneiras, técnicas, formas, soluções imbatíveis. Descobri até uma formação em criatividade. Penso na pessoa que faz algo assim e precisa responder à pergunta “o que você faz?”, dizendo “Sou criativo”. Desculpe, não sei você, mas achei engraçado.
A criatividade entrou na minha vida no auge da pandemia, em 2020, quando decidi fazer um curso que estava há anos na minha lista de desejos: O Processo Criativo, com o professor escocês Charles Watson, que mora no Brasil e fala português. Watson me havia sido indicado por uma série de amigos. Formado em artes, ele pesquisa o processo de criar de vários artistas há décadas: pintores, escultores, arquitetos, escritores, comediantes, coreógrafos, músicos. Tem um material invejável entre entrevistas, documentários, livros.
Tenha coragem de aprender algo novo
O desejo em entender o que nos leva a criar, como isso acontece dentro da gente, fez também com que Watson se tornasse uma das maiores referências no assunto. Mas o pesquisador só dava a versão completa do seu curso, que tem duração de quase seis meses, no Parque Lage, no Rio. A pandemia mudou tudo e ele ofereceu, de forma inédita, o curso com aulas online. E eu não podia deixar a oportunidade passar.
Charles, que tinha hora para começar a aula, mas nunca para terminar, mudou a minha relação com a escrita e também com a vida. E ainda me impulsionou a ter coragem para aprender algo novo. “Para que um projeto artístico aconteça, precisamos estar com a energia para agir. Por isso são necessários fatores como uma relação apaixonada com o assunto, curiosidade intensa, persistência e coragem”, ensina ele. É neste salto de coragem que nos impulsa para a criação de algo novo que vou mergulhar a seguir.
A criação e o corpo
Em uma de suas entrevistas sobre processo criativo, Charles Watson pergunta para a coreógrafa Deborah Colker: “onde a dança nasce em você?”. E ela responde, sem pensar duas vezes, apontando para o braço: “no cotovelo”. Fiquei intrigada com a resposta – acho que muitos dos conhecimentos com os quais tomei contato no curso de Watson demoraram meses para serem decantados.
Tempos depois, me deparei com a seguinte declaração da escritora angolana Djaimilia Pereira de Almeida: “Há uma coisa curiosa que acontece quando escreves e não tens um plano, que era o meu caso: é que vais inventando a história e não apenas vais descobrindo qual é a história que estás a contar como também percebes qual é o aspecto da tua imaginação. Antes de inventares uma história, tu não sabes isso. É como se a nossa imaginação tivesse uma forma que desconhecemos e que é revelada quando escrevemos um romance. Não são só os outros que veem como ela é, mas para ti própria é uma surpresa. Porque eu estava habituada a escrever ensaios acadêmicos, textos na primeira pessoa, estava habituada até a fazer uma espécie de reportagem, mas não estava habituada a imaginar. Como é que eu sou quando estou a imaginar?”.
A pergunta de Djaimilia me pegou de jeito: não fazia a menor ideia de como sou quando estou criando ou imaginando. Você sabe? Juntei as pontas entre o que disse Colker e a escritora angolana. A criação começa no corpo e a gente nem se dá conta disso. Ela é sentida, percebida. E isso vale quando decidimos aprender um instrumento, um idioma, desenhar.
Só que vamos perdendo essa conexão com o corpo que não “ouve”. Isso me fez entender uma grande lição sobre criatividade. Não é algo mágico, que busco apenas fora, como um farol a iluminar meu caminho. É uma busca que envolve conhecimento de fora e de mim mesma. E meu corpo estava me dizendo que eu não tinha a menor ideia de onde ficava o meu cotovelo.
Boneco de palito
Ano passado, fui à exposição do cineasta, escritor e desenhista Tim Burton, em São Paulo. É ele quem assina filmes como “A Noiva Cadáver”, “O Estranho Mundo de Jack” e “Edward Mãos de Tesoura”. Me encanta a maneira como desenha os personagens, cheios de imperfeições.
O divertido é descobrir que trabalhou anos na Disney, empresa em que era obrigado a desenhar de uma maneira que nós sabemos qual é. “Nessa época, um professor de desenho me disse: seja apenas você, não pense em estilo. Essas foram palavras muito especiais para mim”, conta Burton, em uma das entrevistas que concedeu quando esteve por aqui.
O personagem Edward Mãos de Tesoura, um dos primeiros criados por ele, nasceu da experiência da própria infância. Tim não gostava de ser tocado ou abraçado. “Não sou muito bom em me expressar verbalmente, então desenhar sempre foi um jeito de expressar meus sentimentos”, afirma.
Ao longo da exposição, os desenhos de Burton chamaram minha atenção pelo desapego com a perfeição. Personagens descabelados, com nariz grande demais, olhos esbugalhados, pernas tortas, bolas, cores, uma profusão de informações que não seguem qualquer referência preconcebida.
Naquele dia, cheguei em casa inquieta e com uma estranha vontade de desenhar. Bem eu que só sei fazer boneco de palito? Mas comecei para não mais parar. Com o tempo, percebi que experimentar algo novo seria vivenciar o processo criativo a partir do zero, como uma folha em branco.
Tirar o censor do caminho
Orhan Pamuk é um escritor turco que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2006. Ele estava, anos atrás, no Brasil para participar de uma conferência do Fronteiras do Pensamento. Teve um trecho da fala dele que me tocou sobre a diferença entre criar e replicar.
Quando jovem, Pamuk começou a escrever poemas. Mas parou com a poesia quando percebeu que não tinha uma linguagem dele. Conforme contou, estava usando as palavras da moda e fazendo algo que era esperado pelo mundo de fora. Ou seja, estava replicando, e não criando.
Foi quando correu atrás da sua linguagem e abandonou a poesia. “Sou feliz porque, por natureza, preciso criar e usar minha imaginação. Preciso transformar a realidade, pensar e brincar com ela. É inevitável, é como uma enchente natural, que sai de mim e que é óbvio que farei por toda a vida”.
“Onde estava a minha enchente?”, pensei. Comecei a fazer meu primeiro caderno de desenho logo depois de ir à exposição do Tim Burton. No início, o medo era intenso. O que me ajudou a sair da paralisia foi me recordar da experiência que tive ao ler O Caminho do Artista, da americana Julia Cameron.
Experimente sem medo de errar
Julia Cameron afirma que não existe criação sem deixar o nosso censor interno de lado. Percebo, então, que estou em busca de uma travessia cheia de certezas, como se houvesse o tempo todo um farol iluminando meus passos.
Segurança. Só que zonas de segurança não combinam com criação, que é se colocar em águas desconhecidas. Foi quando comecei a me soltar e a experimentar. A errar muito e a acertar de vez em quando. Neste trajeto, tive apoio do namorado, desenhista, artista digital, músico. Até que, um belo dia, lhe enviei um desenho e recebi de volta: “você acaba de encontrar seu olhar”.
Me recordo da sensação, um misto de alegria, receio, empolgação. Entendi que, quando estou criando, sinto ondas de tranquilidade pelo corpo. Não ouço nada. Meus filhos podem entrar na sala e falar comigo. Tenho uma surdez temporária. Meu cotovelo, afinal, são ondas que percorrem meu braço e tapam meus ouvidos. Entendi, Deborah Colker.
Um farol em mim
Desde então, meus desenhos têm se modificado conforme a coragem de adentrar nas minhas profundezas. O farol não estava do lado de fora, mas dentro de mim. Meus textos, consequentemente, também estão mais maduros. Modifico a estrutura, presto mais atenção às palavras, aos pontos e ao sentido que imprimo nas narrativas. Trago consciência para alargar as minhas margens – a tal da enchente que Pamuk citou.
Criar e não replicar. Traduzir meu olhar. Isso não significa que esteja com a capa da coragem o tempo todo. Quando o Tiago e a Débora me convidaram para ilustrar esta matéria na revista, gelei. Não me sentia capaz. E ouvi do Tiago: “você entende muito sobre processo editorial e sabe como fazer”. Mas eu nunca desenhei nas páginas da Vida Simples.
Estudei. Fiz e refiz as ilustrações até chegar à linguagem que acreditei ser adequada para este texto e ainda assim mantendo meu olhar. Quando nos dispomos a aprender algo novo, nem tudo no processo é racional.
Existe um momento em que apenas confiamos, sem qualquer certeza de acerto – o erro faz parte, e evitá-lo é se apequenar. A navegação ora é profunda, ora é turbulenta. Mas agora você entende que é farol, numa travessia em que a parte mais difícil é acreditar em si.
Por Ana Holanda – revista Vida Simples
Não pretende parar de escrever, mas está aceitando as primeiras encomendas de suas ilustrações.