Veja como superar os desafios de viver a dois
Tenho um casal de amigos que são minha inspiração. Vê-los juntos, conviver com eles, desperta em mim o desejo de também viver um amor romântico como o que ambos constroem todos os dias. Como diria minha avó, “os dois dão muito certo”: compartilham momentos juntos, mas também têm suas individualidades e seus instantes de introspecção.
Viajam para destinos incertos, mas planejam a rotina de maneira que a convivência funcione bem em casa e fora dela. Conversam sobre o que sentem e buscam pela melhor solução, mesmo que isso implique ceder em algum ponto. Construíram uma família ao modo deles, encaixando cada preferência e a personalidade de cada um. Óbvio, nem tudo é tão bonito a todo instante. Existem também as tempestades, os desencontros, os estranhamentos. Sei disso porque uma das partes me conta, quando precisa aliviar o coração.
Mas o tempo fez deles uma espécie de porto onde, aconteça o que acontecer, há espaço para o diálogo, o respeito e a compreensão de ambos os lados. E não é só: há reciprocidade e vontades semelhantes em fazer dar certo. A meu ver, esses são ingredientes fundamentais para que, em qualquer relação, duas pessoas possam crescer de maneira individual e ainda permanecerem unidas, também evoluindo em conjunto. Entretanto, nem sempre encontramos ou somos pessoas dispostas a isso.
Conviver demanda respeitar a bagagem do outro
Muitas vezes, os traumas pelos quais passamos geram defesas que, ao invés de nos aproximar, nos afastam do outro e até de nós mesmos. Além disso, as verdades absolutas, bem como o desejo de poder e de domínio, corroem até as construções mais sólidas. É aí que os laços perdem a leveza e, no lugar, ganham enormes desgastes.
Conviver é, sim, uma das artes mais bonitas e complexas que existem. E evoluir ao lado de quem amamos faz parte do processo do amor. Mas esse direcionamento de vida pode ser tão ou mais desafiador do que nos aprimorarmos sozinhos. Então, como fazer disso algo prazeroso? Como é possível progredir em par sem ultrapassar nossos espaços, sem nos ferirmos mutuamente?
Nós nos vemos
Talvez, antes de responder a essas perguntas, seja importante refletirmos primeiro sobre o que é de fato se desenvolver em par. A Fê Lopes é psicóloga e psicanalista. Ela diz que, na sociedade em que vivemos, as pessoas costumam associar o crescer junto a enriquecer e acumular bens materiais. No entanto, as riquezas adquiridas não atestam propriamente que duas pessoas estão evoluindo juntas.
“Isso só quer dizer que nossa conta bancária está se avolumando. Crescer junto é diferente: quer dizer que eu te vejo e que você me vê. Vejo suas potencialidades, vejo suas limitações, e você também vê as minhas. Então, eu posso me fragilizar nessa relação, posso me vulnerabilizar, e a gente vai se ajudar em nossas dificuldades”, observa.
Na prática, só para entendermos melhor, a Fê faz uma comparação com situações cotidianas, como o simples gerenciamento da alimentação em casa. Se eu não tenho o costume de me alimentar bem ou não me importo muito com isso, claramente essa não será minha prioridade. Mas, se tenho comigo outra pessoa que possui hábitos alimentares mais regulares e saudáveis, disposta a me ajudar sem críticas ou cobranças, aos poucos, isso também vai entrando na minha vida. Uma influência do bem.
“Inclusive, quando me der conta, estarei comendo mais salada e, ao perceber que ela acabou, logo eu mesma irei comprá-la”, exemplifica. Em contrapartida, o outro lado oferece algo que faz parte da sua rotina, como a prática de atividade física. Estabelece-se um equilíbrio, uma parceria entre ações e habilidades.
Sob essa perspectiva, crescer junto tem muito a ver com a forma como influenciamos o outro com aquilo que é nosso, com nossos hábitos e costumes diários. “A gente afeta mutuamente a vida um do outro. E é preciso que ambos estejam abertos para se afetar, porque, senão, de nada adianta”, pontua a psicóloga.
É verdade. Eu posso ser a pessoa mais engajada e animada do mundo: se quem está comigo não estiver disposto a seguir em harmonia ao meu lado, aos poucos, começarei a me sentir cansada e sobrecarregada. Pequenos sinais de alerta se acenderão em mim. E eu precisarei estar atenta para respeitá-los.
Trocar, não impor
Disposição é um fator que conta muito em qualquer processo da nossa vida. Podemos ter diversas dificuldades, mas, quando estamos dispostos a aprender, a ceder, a olhar para os nossos limites e respeitar os do outro, damos um passo importante para erguer nossa base de partilhas. “Se estou fechada e só eu sou dona da verdade, não cresço e não te ajudo a crescer. Estou sempre na posição de mestre, e você, na de estudante”, afirma Fê Lopes.
Segundo ela, para o crescimento mútuo acontecer em qualquer compromisso, precisamos deixar um pouco de lado a expectativa e a ideia de que há uma simetria exata dentro de todas as relações. “A vida é dinâmica, não existe uma reciprocidade 100% do tempo. Mas eu vou entendendo que você tem alguma coisa para me dar, eu tenho alguma coisa para te dar e a gente pode construir coisas juntos”, explica. “Isso é muito desafiador, porque eu tenho que renunciar a uma posição colonizadora do outro”, completa Fê.
Para que funcione, é importante entendermos que cada um de nós está em um momento de vida diferente e traz uma bagagem também diversa, com experiências de naturezas distintas. E é disso que são feitas as trocas: temos algo para dividir, da mesma forma que teremos coisas novas a aprender, independentemente dos avanços que já experimentamos.
Assumir essa posição aberta, na qual ensino e também aprendo, sem arrogância ou competição, é uma chance de fortalecer a união e estimular o florescimento em par. “Não dá para pensar um relacionamento em que haja crescimento sem pensar na renúncia de uma posição de poder, numa abertura para a escuta, para ser afetado por aquilo que o outro traz para a sua vida”, observa a psicóloga.
Vamos aprendendo
Se evoluir junto também se baseia em uma troca, é justo que o desabrochar de cada um, individualmente, contribua diretamente para a evolução do outro. “Nessa sala de aula do amor, ensinamos com paciência e aprendemos com humildade, reconhecendo que cada interação é uma oportunidade para fortalecer os laços e expandir nossa compreensão sobre o amor, o outro e nós mesmos”, explica Desirée da Cruz Cassado. Ela é mestre e especialista em Psicologia Comportamental Contextual, psicoterapeuta e professora da The School of Life.
Baseada nas visões do filósofo Alain de Botton e da educadora e ativista Bell Hooks, ela me confirmou que o amor é um conjunto de habilidades que precisamos desenvolver diariamente. “Isso inclui a assertividade para expressar necessidades e desejos, a empatia para compreender profundamente o outro, a generosidade para oferecer suporte e carinho, e o autoconhecimento para entender nossas próprias emoções e motivações”.
Logo, progredir em uma relação exige de nós a capacidade de praticar o amor como uma ação de cuidado e compreensão, porque amar verdadeiramente é um exercício contínuo. “Um casal cresce junto quando tem disposição para enfrentar conversas difíceis com abertura e respeito, quando pratica uma comunicação transparente e compassiva, quando flexibiliza para negociar soluções que atendam às necessidades de ambos e tem generosidade em compartilhar conhecimentos e experiências, além de humildade para aceitar aprendizados”, afirma Desirée.
Para ela, esses são indicativos da maturidade emocional, um fortificante para os vínculos que ajuda a ultrapassar os obstáculos da caminhada conjugal. “A psicóloga Esther Perel nos lembra ainda que a manutenção do amor e do desejo em um relacionamento de longo prazo exige não apenas a comunicação aberta, mas também o respeito pelas individualidades e a coragem de se reinventar juntos”, destaca Desirée.
Ser individual juntos
Apoiar o crescimento e a individualidade do outro é um dos caminhos mais seguros para estimular o desenvolvimento de ambos numa relação — claro, mantendo o respeito por nossas necessidades e observando os pequenos sinais de reciprocidade, que podem se manifestar de diversas formas, mas devem sempre ser reconhecidos na convivência.
“É um ato de equilíbrio delicado que reflete a essência do amor saudável. Bell Hooks fala sobre a importância de nutrir um amor que liberte, em que o apoio mútuo e o encorajamento para a individualidade são fundamentais”, pontua Desirée. E conclui: “ao honrar nossas ações e escolhas, bem como as do nosso parceiro, cultivamos um relacionamento baseado na confiança, no respeito e na liberdade de sermos autenticamente nós mesmos”. Aí, então, podemos ser apoio sem desmoronar. Também não esperar que o par nos escore todo o tempo. Enfim, crescer amparando um ao outro, com amor e gentileza.
Por Débora Gomes – revista Vida Simples
Jornalista e acredita que as relações se fortalecem quando há respeito.