“Não quero mais ser seu amigo”. Com a frieza de uma lâmina, Colm corta a amizade com Pádraic, um homem simples e cordial, atordoado com o que acaba de ouvir. A trama do filme Os Banshees de Inisherin é fictícia, mas seu impacto me fez lembrar que, na vida real, amizades também atravessam crises, ficam estremecidas e podem até se desmanchar pelo caminho.
Costuma ser delicado pisar nesse chão espatifado. A gente não sabe muito bem o que fazer com a sensação de que a relação está diferente, seja porque você ou o outro se modificaram, seja porque as afinidades se evaporaram. Ou, então, porque as cobranças ficaram pesadas demais para um laço que deveria ser feito da mais pura espontaneidade.
Pois é, diferentemente da família – que nos é dada pela loteria divina –, amigo é escolha, jamais obrigação; é um laço fundamental na construção da nossa identidade e caráter, especialmente quando somos jovens; é aquele lugar onde nos sentimos vistos e apoiados como em poucos nessa vida. Por isso mesmo, quando ele se desestabiliza, merece ser repensado com carinho. Guarde a lâmina de Colm e veja o que é possível fazer para regenerar a amizade, se ela ainda for valiosa para você, claro! Pode confiar no seu coração.
Dê um tempo
Na visão do escritor Fabricio Carpinejar, a falta de sintonia entre amigos pode ser passageira. Além do mais, todo mundo tem o direito de perder a paciência, ser mais rude do que de costume, fazer um comentário inoportuno ou mesmo se afastar para lidar com as próprias dores no colo da solidão.
“Rememore o quanto vocês se conhecem, o quanto viveram de cumplicidade e segredos, o quanto superaram adversidades e desilusões. Não vale a pena sacrificar uma história inteira feliz por um dia ruim”, ele escreve no livro Amizade É Também Amor (Bertrand Brasil).
Claro que conversar sobre o que está incomodando, levando para as palavras o espírito do entendimento, é a opção ideal. Porém, para que isso aconteça, é preciso que os dois lados estejam disponíveis. Sincronia de tempos internos.
Se ainda não há abertura, afastamentos temporários podem aliviar decepções e trazer novas perspectivas para a sua história de amizade. Já considerou essa possibilidade? “Dê um tempo para o amigo, afaste-se por uma semana, crie saudade de um mês, porém não destrua os laços em função de uma implicância”, sugere Carpinejar.
A convivência não tem a mesma intensidade
Na vida adulta, é comum os amigos de longa data serem arrastados para longe: estudo, casamento, filhos, mudança de país, trabalho. Mesmo com a ajuda da tecnologia, a convivência não tem a mesma intensidade da juventude. E isso pode melindrar os mais apegados, aqueles que esperam saber de cada coisa que acontece na vida do amigo e, de preferência, participar delas.
“Isso não quer dizer que a amizade se encerrou. É importante que as pessoas conversem e possam lembrar qual é o sentido daquela relação na vida delas”, afirma Danielle H. Admoni, psiquiatra geral e da Infância e Adolescência, supervisora na residência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM).
Amigos de infância
As amizades de infância, que nos acompanham jornada afora, são as mais impactadas pelas mudanças de rumo, de opiniões, jeitos de viver. Haja flexibilidade para compreender que o amor perdura, apesar da ausência física, das discordâncias, das rotinas contrastantes. Como escreve Carpinejar, “assim como há os amigos imaginários da infância, há os amigos invisíveis na maturidade. Mas aqueles que não estão perto podem estar dentro”.
“É legal a gente manter as nossas amizades de infância. Até para pensar como eram e para onde vão, pois nos formamos por meio das nossas relações”, destaca Danielle. Tenho uma amizade antiga que passou por uma prova e tanto. Marina era nossa amiga desde o Ensino Fundamental. Formávamos um grupinho de oito. Inseparáveis.
Até que ela ingressou na faculdade, começou a namorar um colega de turma e se afastou da gente. Namorou, ficou noiva, desmanchou o noivado. E voltou para a nossa turma dez anos depois. Era como se nunca tivesse saído. Era como se a gente tivesse se visto na véspera. O bem-querer ainda estava entre nós e foi mais forte do que a mágoa ou o julgamento. E permanece assim até hoje.
Nem todas as amizades são vitalícias
Às vezes, porém, não tem outro jeito. Temos de reconhecer e aceitar que uma amizade cumpriu seu ciclo e, portanto, não faz sentido insistir em sua existência. É a lei da impermanência. Nós mudamos e, junto com as nossas metamorfoses, alguns laços perdem a razão de ser.
Nem todas as amizades são vitalícias. Mas isso não significa que não possamos guardar as memórias compartilhadas no escaninho da gratidão. Afinal, esses vínculos nos proporcionaram momentos significativos na época em que estávamos ali por inteiro, com a nossa verdade.
Diálogo, limites e carinho
A psicóloga Cristiane Machado explica que certas relações de amizade podem nos causar grande angústia e, em vez da leveza esperada, nos surpreender com a sensação de peso e até opressão. Quando isso acontece, provavelmente, uma ferida emocional ligada à nossa relação com alguma figura da nossa família está sendo ativada por aquela convivência específica.
“Alguns sentimentos e emoções nossos são projetados nas amizades. E, quando a relação é intensa, pode reproduzir vínculos familiares, padrões afetivos que não foram muito saudáveis”, afirma Cristiane.
Por depositarmos na amizade uma expectativa amorosa, podemos sofrer uma série de frustrações: expectativas não atendidas, investimento de afeto em proporções diferentes – quando o dar e o receber se desequilibram –, cobrança excessiva ou até abandono em momentos de maior fragilidade. “Se eu vejo esses padrões de relacionamento reproduzidos nas minhas amizades, isso gera uma crise para mim. Para outras pessoas pode ser que não”, pontua a psicóloga, canceriana sensível e introspectiva.
Diante desse desconforto, é possível se afastar para, primeiro, tentar entender o que está se passando dentro de você, e só então posicionar a outra pessoa, esclarecendo o que incomodou e estabelecendo limites para que a amizade possa prosseguir em bases mais construtivas.
Ajustes são necessários
Falando assim, parece fácil. No calor das emoções, entretanto, as coisas podem se atropelar. Anos atrás, as amigas Ana Paula e Mariângela tiveram que realinhar os termos da amizade. Só que isso não aconteceu numa conversa tranquila, mas depois de uma explosão que trouxe à tona pontos indigestos que foram se acumulando com o passar do tempo.
Colegas de firma há décadas, elas conviviam diariamente e, fora dali, partilhavam hobbies e interesses. Ana Paula, muito afetiva e cercada de amigos; Mariângela, controladora e possessiva, sentia ciúmes dessas outras amizades. Além disso, Ana Paula se incomodava com o fato de ser transparente em relação às suas dores e dificuldades, e perceber que a amiga se fechava quando tinha algum problema. O que lhe parecia injusto e pouco íntimo. Mas nada disso era verbalizado. A convivência seguia.
Até que, um dia, por causa de uma picuinha, Ana Paula, que sempre apelava para a diplomacia, foi mais grossa do que de costume. Mariângela não gostou e devolveu a estocada. Entre desabafos e acusações, elas conseguiram externar cada coisinha que não ia bem na relação.
Foi uma catarse. Elas ficaram emocionalmente esgotadas, porém, depois daquele episódio, o elo entre as duas se aprofundou e se fortaleceu. Aliviadas, elas compreenderam que era possível fazer ajustes e seguir cultivando uma amizade rara pelo tanto de afinidade que comportava.
Uma nova fase, não o fim
“Às vezes, a gente precisa de tempo para entender por que algo nos desagradou em determinada relação de amizade. Se é um aspecto ligado a uma ferida nossa e não necessariamente à postura do outro. Se for, a gente precisa cuidar dessa questão para não continuar projetando-a em nossos amigos”, orienta Cristiane.
Além disso, alerta a psicóloga, precisamos tomar cuidado para o nosso silêncio não se tornar uma punição ao outro, que perceberá o nosso distanciamento, muitas vezes, sem ter a menor ideia do que o motivou.
Esses cuidados podem nos mostrar que a amizade não precisa se encerrar por causa dos descompassos, e sim o padrão de relacionamento que vinha sendo praticado até então. Para que uma nova forma, mais equilibrada e satisfatória para ambas as partes, possa ser construída. É um avanço, um amadurecimento, e não um adeus. Desde que os dois lados estejam comprometidos em zelar por esse espaço seguro, ancorado na confiança e imune a julgamentos. Pois amigo de verdade nos ampara.
“De tempos em tempos, atravesso crises com minhas amigas, mas sei que vamos superá-las, pois elas são minhas irmãs. Não há como seguir sem elas. Se a gente puder ter um olhar carinhoso e compassivo com o outro e com a gente mesma, isso é possível”, afirma Cristiane. Você também sente assim, venha o que vier?
Por Raphaela de Campos Mello – revista Vida Simples
É jornalista e, como uma boa aquariana, respeita o espaço e o momento de suas amigas. Longe dela sufocar alguém.