No quintal da casa onde eu cresci, à sombra de uma árvore frondosa, cuja espécie até hoje não sei, havia uma mureta de tijolinhos onde eu gostava de subir. Sozinha, mirando lonjuras no céu, ali eu deixava minha imaginação à solta. Foi lá que eu criei uma escola diferente das outras, em que não haveria aulas tradicionais, mas, sim, arte, música, filosofia. Imaginar era das coisas mais legais que existiam.
É que eu não fui uma criança cercada de excessos. Ia para a escola de manhã e tinha as tardes livres para fazer muitos nadas. Além do dever de casa e da TV, ainda sobrava tempo. Fiz natação na infância, inglês na adolescência, e só. Levava minha imaginação a passeio para criar histórias, escrever e desenhar.
Também não tive abundância material. Lembro-me das colegas com os últimos lançamentos de brinquedos, a casa da Barbie, o carro da Barbie, o boneco do Baby Dinossauro ou do ET; o presente mais incrível que ganhei no Natal foi uma boneca patinadora. Talvez houvesse um exagero de TV, mas não havia streamings nem YouTube, a programação que me atraía era limitada. Nada comparado aos dias de hoje.
Mar de excessos
Não tinha me dado conta dessas coisas todas, que me vieram à memória para contrastar com o mundo atual, até conversar com a Elisa Lunardi, minha primeira entrevistada para esta matéria. Educadora e mãe do Francisco e da Maria, Elisa é defensora de uma infância livre, permeada por baixo consumo, reaproveitamento dos materiais e olhar voltado às miudezas com espaços alargados para os vazios.
“Estamos imersos em um mar de excessos em todas as instâncias”, ela me diz. E, não se engane, as ondas dessa maré estão cada vez mais altas: a produtividade máxima, o esgotamento do tempo, os bens de consumo, o bombardeio midiático de informações, de telas, de estímulos sensoriais. Como bote salva-vidas, Elisa criou o projeto “Infância sem Excesso” há seis anos, com apoio de outra educadora, Tati Garrido.
A ideia surgiu de mansinho numa madrugada, enquanto amamentava a caçula e pensava no aniversário do filho mais velho, que se aproximava. Como conciliar esse espaço lúdico e sereno da infância com a exorbitância de presentes, de embrulhos, de plásticos? No dia seguinte, Elisa mandou uma mensagem no grupo das mães dos coleguinhas, pedindo, de presente, apenas algo escolhido e feito em casa pelas próprias crianças.
Dois picolés são suficientes
Daquela tarde de festa infantil, ficou guardada a imagem da caixa de isopor com bolinhas coloridas coladas por fora, contendo dois picolés do sabor favorito do Francisco – um dos presentes mais legais. Simples assim. “Ali eu soube que o meu mundo poderia ser refeito de outra forma”, ela recorda. E, desse modo, passou a levar novas propostas educativas para salas de aula, rodas de conversa e ateliês.
Elisa diz que é preciso ressignificar a lógica de que tudo precisa ter utilidade. “São os tem que… tem que ter isso, tem que fazer aquilo, tem que viajar para tal lugar, tem que ter o inglês à frente do tempo. A gente não está dando espaço para os nossos filhos serem o que eles são, para se elaborarem enquanto sujeitos, e isso tem me preocupado bastante”.
Lilia Mapurunga entende bem disso. Professora do jardim de infância, ela acompanha essa realidade, além de a ter vivido também na pele. Inglês, reforço escolar, balé, teatro, jazz, natação, desenho, ginástica rítmica, dança indiana. Após a escola, as tardes eram sempre cheias. Nem todas as aulas aconteceram no mesmo período, claro, mas a agenda nunca ficava vazia.
O resultado disso é que ela sentia falta de tempo livre. “Desenvolvi algumas habilidades que me ajudam na profissão, mas eu rezava pelas férias para assistir ‘Sessão da Tarde’ na TV. Como eu estava sempre ocupada, indo de uma atividade para outra, não criei vínculos profundos na infância e cheguei à adolescência com essa carência”.
O tédio é criativo
Hoje, Lilia considera que os desafios são ainda maiores, principalmente com o apelo das novas tecnologias. “A única tela a que eu tinha acesso era a televisão. Hoje tem celular, tablet, tantas coisas, e isso gera nas crianças uma ansiedade muito grande, uma hiperatividade”, explica.
Ela viu isso em sala de aula. Um dos alunos apresentava uma agitação intensa que o impedia de se concentrar. Na hora de ouvir uma história, ele simplesmente não conseguia se sentar e ficar quieto. Pais e escola já pensavam em buscar diagnóstico e tratamento. Em vez disso, uma atitude mudou tudo: a mãe tirou o acesso às telas. “Ele virou outra criança, se acalmou, foi uma diferença impressionante”, conta Lilia.
Os exemplos ressoam com o que diz o escritor e jornalista escocês Carl Honoré, idealizador do movimento Slow. No livro Sob Pressão: Criança Nenhuma Merece Superpais (Record), ele afirma que, mais do que em qualquer outra geração, nossos filhos estão sofrendo com informação demasiada, jornadas diárias exaustivas e competitividade exacerbada. Com isso, estão ficando mais deprimidos, obesos, míopes e, consequentemente, medicados.
Para Honoré, o tédio é criativo e precisa ser incentivado. Além disso, crianças de até 5 anos não precisam de agendas estruturadas e as atividades extracurriculares não devem ter o objetivo de engordar o currículo dos pequenos, mas de estimular o exercício do corpo e da mente.
Pode brincar
A engenheira civil Fernanda Arouca Fontes percebeu isso a tempo. Quando o filho mais velho, Davi, estava com 7 anos, ela decidiu mudá-lo de escola por achar que a quantidade de dever de casa e assuntos ensinados estava exagerada. Optou por uma que respeitasse o desenvolvimento infantil e trabalhasse outras habilidades. “Isso permitiu que meu filho tivesse visão mais crítica, capacidade argumentativa e repertório de conhecimento além do ambiente escolar”.
Fernanda pensa que é mais importante correr, brincar livre, observar os ciclos da natureza e adquirir autonomia em atividades correspondentes à idade do que testar a inteligência e a capacidade de aprendizado com componentes curriculares. “Esse excesso de conteúdos me preocupa, acredito que a criança ainda não tem maturidade neurológica e emocional para lidar com tamanha pressão com tão pouca idade”.
Em casa, uma coisa que ela gosta de fazer com os filhos – hoje com 11 e 3 anos – é transformar papelão e elementos da natureza em brinquedos. Eles participam de todo o processo, desde a coleta dos materiais à produção. “Com isso, fortalecemos a importância de aprender a trabalhar em grupo, de entender que cada coisa tem o seu tempo de ficar pronto, de nos perceber capazes de criar algo”.
São justamente gestos como esse e outros, tipo brincar de sério e quem ri primeiro, que Elisa Lunardi sugere, chamando de brincadeiras miúdas que pausam um dia de atropelo. “Com ações miudinhas é que a gente transforma o tempo presente”, ela ressalta. E isso passa por valorizar o que já se tem ao alcance, como regar as plantas, preparar uma receita juntos. “É preciso descolar dos automatismos e trazer o ‘à toa’, o ‘a troco de nada’. Voltar para o simples mesmo”.
A conversa com Elisa me lembrou do período de pandemia, quando passei a recorrer exatamente a esses recursos caseiros com os meus filhos. Lavamos roupas deles juntos na bacia, assamos bolo, montamos cabana de lençol, pintamos bonequinhos em rolos de papel higiênico. O tempo, forçosamente, havia nos dado uma pausa. Hoje, com eles descobrindo a adolescência e em ritmo de estudo e provas, o dia a dia já é outro. O alívio é saber que a infância deles foi marcada por muito pé no chão, subida em árvores e brincadeiras.
Pausando o relógio
Para afastar as crianças das ondas altas do mar de demandas, Lilia Mapurunga defende que o caminho deve ser percorrido primeiro pelos próprios adultos. “É a gente procurar tirar esses acúmulos de nós, trazer a importância da simplicidade em nossa vida. O excesso só sobrecarrega, hiperestimula o cérebro, gera fadiga mental, ansiedade”, pontua.
Em sala de aula, ela sentiu que estava indo no caminho certo quando uma aluna chegou correndo para lhe entregar um presente especial. “Ela me mostrou como se trouxesse o tesouro mais precioso, e era uma folha seca que ela achou no chão. Ela não sentiu necessidade de ir a uma loja. Eu fico feliz vendo essas manifestações das crianças.” Quanto afeto pode caber num gesto singelo, não é?
Elisa diz que a gente faz bem em se interiorizar, pois “começando dentro, pode cultivar fora”. Isso pressupõe pedir trégua ao relógio para silenciar, olhar o céu, contemplar as belezas, nutrir-se de poesia e encantamento pela vida. Como propõe a poeta Roseana Murray, precisamos habitar um lugar mais bonito: onde as pessoas possam viver de palavras simples e quentes, como “amor, pão, mel, encontro”.
Quando eu volto ao quintal da minha infância, penso que, afinal, foi ali, no alargamento dos meus vazios, que eu aprendi a perceber o mundo, que hoje tanto me ajuda a escrever… não, não só um texto como este, mas a minha própria história.
Por Luisa Sá Lasserre – revista Vida Simples
Escreve crônicas para viver menos excessos e mais poesia em seu cotidiano.