Ainda que já tenha feito isso milhares de vezes ao longo de 20 anos como jornalista, escrever este texto me deixou ansioso, tal como foi com todos os outros. Será que atingi a minha expectativa e a das editoras de Vida Simples? Será que fui claro e sensível a quem me lê? Posso olhar para essa minha ansiedade de forma corriqueira, sem me estender em analisar o sentimento. Afinal, ela é parte da natureza humana, desempenhando um papel adaptativo importante.
Em termos evolutivos, por exemplo, é uma resposta de alerta diante de ameaças percebidas, desencadeando uma série de reações fisiológicas e psicológicas que preparam o organismo para enfrentar ou evitar situações de perigo. E, em níveis moderados, é capaz de motivar as pessoas a se mover e enfrentar desafios, impulsionando a busca por soluções e promovendo a ação.
Dualidade da ansiedade no novo milênio
Aliás, até gostamos da sensação provocada por aquela ansiedade que envolve alguma experiência possivelmente agradável e iminente em nossas vidas, como quando se aproxima a data para uma viagem tão aguardada, o primeiro encontro com quem nos traz um brilho ao olhar, o nascimento de um filho. Aliás, com esse ano todinho pela frente, há sempre um frisson diante dos planos e resoluções para se colocar em prática.
Contudo, mal começamos esse século e um outro tipo de ansiedade, com características patológicas e, portanto, muito mais grave, já é considerada seu grande mal. Quiçá seja o mal do milênio todo que está por vir, sendo fator de risco para doenças e comprometendo significativamente a qualidade de vida das pessoas.
Normalização da ansiedade na sociedade contemporânea
A sociedade moderna, com suas demandas aceleradas, pressões sociais e a constante exposição a informações, amplifica e distorce a experiência natural da ansiedade. Fatores como competitividade, comparação social e a busca incessante por sucesso contribuem significativamente para o aumento dos níveis de ansiedade.
É quando, em nosso cotidiano, inúmeras vezes não só duvidamos como temos certeza de que não vamos dar conta dos desafios, das tarefas diárias. Nos sentimos desorganizados internamente e, consequentemente, ansiosos.
Como resposta a esse quadro, acabamos por normalizar essa ansiedade patológica, que se tornou onipresente, infiltrando-se silenciosamente em cada aspecto da vida. O que antes era um fenômeno esporádico, agora parece ser uma condição crônica que, infelizmente, muitos aceitam como parte inevitável da existência.
Crise de presença
O psicólogo e escritor Alexandre Coimbra Amaral, autor do livro Toda Ansiedade Merece Um Abraço (Paidós), enfatiza que o mundo produtivista gera a ansiedade e a eleva como parâmetro de sobrevivência. Dessa forma, quanto mais ansioso você é, muitos entendem que mais conectado com o trabalho e com a empresa você também é, e que assim estaria melhor comprometido com o seu propósito.
“Há várias dessas expressões sobre certa celebração da ansiedade, ligadas à produção do trabalho na nossa sociedade. Então, a ansiedade é, sim, elemento que nutre as pessoas, mas, a partir do momento em que a gente se perde e a ansiedade colapsa nosso corpo, ela deixa de ser essa entidade que nos coloca para a frente, nos põe para trabalhar e produzir; ela cobra um preço por se viver 24×7 desse jeito”, identifica Amaral.
Sobre esse tema, o psiquiatra italiano Mauro Maldonato enfatiza que a ansiedade também é o termômetro dos movimentos contraditórios de uma civilização, a contemporânea, que não consegue mais resolver seus próprios conflitos internos.
Autor, entre outros, do recente Exercícios de Perplexidade: Aforismos (Edições Sesc São Paulo) e chefe do Programa de Psicopatologia Clínica da Universidade de Nápoles Federico II, ele afirma que “vivemos uma inédita e dramática ‘crise da presença’ humana que atingiu a ideia de civilização e o sentido de nossa existência no mundo”.
Como lidar com a ansiedade da melhor forma?
Mas, frente a esse quadro pouco alentador, a resposta mais importante que podemos (e devemos) dar não é ver a ansiedade como uma adversária a ser derrotada, mas acolhê-la como uma parte intrínseca da nossa humanidade.
Cultivar a amorosidade em relação à nossa ansiedade envolve reconhecer e validar nossos sentimentos, compreendendo que as emoções, mesmo as desconfortáveis, são mensageiras valiosas. Em vez de nos julgarmos por senti-la, podemos nos oferecer o mesmo carinho e compreensão que ofereceríamos a um amigo em dificuldades.
A amorosidade no tratamento da ansiedade está representada para Alexandre por um abraço. Não à toa, ele escolheu essa palavra para o título do seu livro. “Acho que o abraço significa, primeiro, o reconhecimento da universalidade do fenômeno, não como psicopatológico ou como uma patologia psiquiátrica. A ansiedade é uma produção dessa sociedade que nos leva o tempo inteiro a ter que entregar, performar, desempenhar, parecer ser para o outro, em todas as esferas da nossa vida e não só no trabalho. A gente tem que ir para a academia e postar, a gente tem que postar uma foto de viagem em que a gente está feliz num lugar lindo. Então, o tempo inteiro a gente está sendo convocado para se colocar como uma pessoa que atinge uma espécie de plenitude mítica na realização de todas as dimensões da vida. E isso é impossível, é uma meta inalcançável. É desumano e sobrehumano.”
Não se envergonhe
Como consequência, salienta o psicólogo, a ansiedade surge como uma coisa que nos envergonha, que nos constrange. E mesmo o ansioso sendo apenas mais um entre os outros 8 bilhões iguais a ele espalhados pelo globo terrestre, ele se sente na obrigação de ocultar, de mentir sobre como está se sentindo.
“Então, o abraço, para mim, é a quebra dessa percepção social de que a ansiedade é algo que precisa ser maquiado. Não, nós ficamos mal por esse funcionamento humano, pós-moderno, ocidental. Ele é adoecedor, e a ansiedade é fruto inevitável, inexorável desse funcionamento social. Então, a gente poder falar disso é um abraço. A gente poder reconhecer que isso é parte do nosso tempo é um abraço.”
Autoconhecimento como chave para cuidar da ansiedade
Precisamos compreender melhor as raízes profundas da ansiedade, tanto quanto ela é reforçada a partir dos sentimentos de desamparo e insuficiência. O autoconhecimento é, outra vez, a chave-mestra desse processo. Quem destaca isso é a psicóloga e paliativista Sandra Linquevis.
Segundo ela, são as nossas criações mentais pessimistas e irreais que alimentam a nossa ansiedade patológica. Medo do futuro, de se perder ou de perder alguém importante, de não encontrar sentido na própria vida, de ser julgado e condenado. Medo de se sentir culpado, de ser injustamente punido. Medo do vazio, medo da vida e medo da morte.
“Todos esses medos, quando vividos como certezas absolutas, concretas e imediatas, acabam nos paralisando. Mergulhar em si mesmo, na própria história, analisar nossas relações, nosso contexto, o tempo e o espaço em que vivemos, são atitudes fundamentais para compreendermos as origens das nossas ansiedades”, atesta Sandra.
Como sair de uma crise de ansiedade?
Todavia, se uma crise de ansiedade já está em ação, é preciso adotar estratégias gentis para retornar ao equilíbrio e superar esses momentos desafiadores. Sandra destaca que as crises ansiosas sempre se relacionam ao medo de algo que pode acontecer. Porém, a maneira que se manifestam varia muito.
Muita gente relata aceleração do coração e falta de ar que levam ao receio de estar tendo um infarto. Outras pessoas têm formigamentos e tremores ou ficam paralisadas, achando que sofreram um AVC. Alguns falam da sensação de angústia, aperto no peito e na garganta. O destino de quem vivencia uma crise séria costuma ser o hospital, em que os exames não apontam nada de errado, apenas a ansiedade.
“Saber disso é o primeiro passo para que a pessoa consiga se autogerir quando vivencia uma nova crise. Todo o processo é desencadeado pela nossa mente, então pensar que é algo passageiro e que não vai nos matar já é um alívio”, afirma a psicóloga.
“Tentar respirar de forma mais lenta e profunda, focar em algo que acalma e distrai, como uma música, um filme, utilizar recursos de aromaterapia, meditação, ioga, enfim, para cada um há um recurso que faz mais sentido, inclusive medicamentoso, quando necessário e recomendado. O importante é sempre lembrar que uma crise ansiosa tem princípio e fim, e, se a gente busca dentro de nós as raízes do problema, provavelmente não viveremos mais a ansiedade como algo patológico.”
Autoconhecimento é importante
Mas, obviamente, o ideal seria desenvolver uma melhor autoconsciência para identificar sinais precoces de ansiedade antes que ela se torne dominante. Alexandre Coimbra Amaral explica que isso é possível só depois de se viver todo um ciclo de ansiedade, uma vez que é preciso ter conhecimento do circuito completo. Claro que as características do surgimento da ansiedade são diferentes para cada um, sendo importante identificar as circunstâncias em que ela surge.
“Outra coisa importante é a gente perceber quais são as pessoas cujo relacionamento conosco nos deixam mais ansiosos. E entender por que a gente fica assim. A outra coisa é entender se a gente tem algum tipo de vulnerabilidade, como culpa, vergonha e medo no enfrentamento da vida. Que pode ser desde não se sentir bem no próprio corpo. Então, isso causa ansiedade no contato social. Outra coisa que a gente tem a fazer é historiar o que vai acontecendo com o seu corpo e com os seus pensamentos para ir construindo estratégias para viver experiências contrárias a essa ansiedade”, orienta o psicólogo.
Desprendendo-se do controle
Não é novidade que o desejo de controle tem sido uma característica inata, em maior ou menor grau, a quase todos nós. Mas a sociedade contemporânea, permeada pela busca por sucesso e segurança, intensificou essa ânsia de dominar todos os aspectos da vida. Por isso, a ansiedade patológica, muitas vezes, surge quando a realidade se choca com a expectativa do controle absoluto, gerando um ciclo de preocupações e medos constantes.
A aceitação do fato de que nem tudo está sob nosso controle é crucial para aliviar o fardo da ansiedade. E, portanto, arrancar as raízes da ilusão de que podemos governar todos os eventos em nossas vidas é essencial. Na opinião de Mauro Maldonato o momento atual do mundo seria propício para esse enfrentamento.
“Nossa era tumultuada é uma oportunidade para questionar o humano sem censura. Neste novo tempo, devemos acolher até mesmo as perguntas mais desconfortáveis, sem medo, como aspectos indispensáveis da aventura humana.”
O cultivo da espiritualidade pode ser uma das formas de nos ajudar a abrir mão do controle, gerador de tanta ansiedade. O monge Genshō Sensei, fundador da Comunidade Zen-Budista Daissen, com sede em Florianópolis, explica que no zen-budismo a prática da meditação é vista como indispensável, e é necessário compreender como a vida funciona por meio do conhecimento da impermanência.
“O saber nos dá condições para escolhas melhores e mais tranquilas, a meditação permite abster-nos de estímulos demasiados e repousar a mente. Ambas as coisas levam a abdicarmos do desejo de controlar o incontrolável na vida”, destaca o monge.
Encontrando paz na aceitação e na conexão humana
Aceitar a ilusão do controle, inclusive, é, na visão de Alexandre Coimbra Amaral, a nossa maior âncora da existência. É preciso, então, buscar ancoragens mais realistas. “A conexão humana é uma resposta muito potente para os momentos em que a gente está diante da vivência muito contundente da falta de controle na vida. Portanto, conecte-se mais a pessoas, àquelas que também têm a mesma dificuldade, que não são infalíveis, pessoas de verdade. Apenas um humano diante de outro humano. Isso ajuda muito”, encoraja.
Ao abraçar o incontrolável compaixão, podemos iniciar uma jornada de transformação emocional. Afinal, a verdadeira paz não reside na busca desenfreada pelo controle absoluto, mas na habilidade de dançar harmoniosamente entre o que podemos guiar e o que devemos aceitar.
Por Gustavo Ranieri – revista Vida Simples
Jornalista e acredita que reconhecer a natureza transitória de todas as coisas é também uma forma de abraço