Como se aproximar da inteligência artificial com lucidez

Como se aproximar da inteligência artificial com lucidez
A inteligência artificial vem sendo usada por todos nós há um bom tempo (Imagem: I AM NIKOM | Shutterstock)

Talvez você tenha se assustado com a precisão com que a cantora Elis Regina foi recriada recentemente por inteligência artificial (IA) para uma campanha publicitária, ou tenha se assombrado com uma âncora de telejornal na China, à primeira vista muito real, que apresenta notícias atreladas aos ideais do Partido Comunista Chinês. Ah, claro, sem necessitar de remuneração, folgas, vale-refeição etc.

Certamente, também começou a ouvir um grande zum-zum-zum em torno do ChatGPT, um chatbot online de IA, lançado em novembro do ano passado e desenvolvido pela OpenAI, empresa apoiada pela Microsoft.

Nessa longa esteira, dispararam inúmeros questionamentos sobre os riscos da IA para a existência humana; o altíssimo desemprego que pode ser gerado a partir da troca de pessoas por máquinas com esse tipo de tecnologia; a necessidade urgente de uma regulamentação governamental sobre seu uso; a utilização desse recurso para crimes; a sua serventia em sistemas militares autônomos, como drones, o que gera preocupação sobre a escalada da guerra; as questões relativas à privacidade; entre tantos outros.

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Não é para menos. Afinal, estamos falando de um ramo da ciência da computação que se propõe a elaborar dispositivos que simulem a inteligência humana. Entretanto, para contrabalançar o fuzuê, podemos debater também os saltos que podemos dar com esse recurso em diversas áreas, incluindo a medicina, a educação, a engenharia, a indústria e a arte. Por isso, é essencial se situar nesse cenário com lucidez e perspicácia.

Contato com IA não é de hoje

Para começar, saiba que a inteligência artificial vem sendo usada por todos nós há um bom tempo. Sua fundação, se assim podemos chamar, deu-se em 1936, quando o matemático britânico Alan Turing criou a “Máquina de Turing”, um dispositivo teórico capaz de executar processos cognitivos.

Vinte anos depois, o termo inteligência artificial foi criado a partir da união do próprio Turing com especialistas em Neurociência, Engenharia, Matemática e Computação para discutir a criação de um cérebro artificial.

Os maiores saltos da IA se deram desde a década de 1990 e se potencializam no século atual. Se você utiliza o Google e suas ferramentas, como o Google Fotos, Gmail, YouTube e Google Tradutor, ou se uma vez ou outra manda uma pergunta ou faz um pedido para a Siri ou a Alexa, ou também utiliza aplicativos de streaming de música e vídeo, como Spotify e Netflix, então, sim, você trava contato diário com tal invenção.

Onipresente como a internet

Quem amplia a compreensão em torno do tema é o professor de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística da USP, Denis Deratani Mauá. Ele conta que entendemos por IA qualquer forma de automação de tarefas que consideramos exigir algum esforço cognitivo.

Se no passado isso era entendido como tarefas exclusivas de seres humanos, especialmente raciocínio lógico e compreensão de linguagem, com o tempo percebeu-se que outras tarefas cognitivas, como detecção e reconhecimento de objetos visuais e processamento de texto de baixo nível, eram de certa forma mais difíceis de serem replicados que as tarefas de uma exigência mais alta.

“As técnicas modernas de IA têm focado nesses casos, que chamamos de percepção, mas de maneira não integrada. Portanto, o sistema que faz reconhecimento de pessoas em imagens não tem relação com o que faz raciocínio lógico ou planeja ações futuras, e o mesmo para texto. O ChatGPT é um passo em direção ao que chamamos de IA generalista, que seria uma IA que pode resolver várias tarefas distintas. E a abordagem é muito simples: consiste em tratar a resolução de qualquer tarefa, como a geração de texto, a partir de perguntas (chamados de prompts, em inglês)”, ele esclarece.

Veremos coisas inimagináveis

Agora, se você questiona qual será o impacto da IA no cotidiano para além dos filmes e campanhas de marketing, a resposta mais rasa e assertiva é: muito grande. Podemos até suspeitar os caminhos, mas só os conheceremos ao longo da jornada.

O escritor e professor Ricardo Cavallini, autor de sete livros que abordam tecnologia, negócios e comunicação, costuma dizer que a melhor forma de as pessoas entenderem isso é olhando para a internet. Há quase 30 anos, em 1996, ele dava palestras afirmando que a rede mundial de computadores mudaria o comportamento de todos, a cultura e o ambiente de negócios, o que era bem difícil de ser aceito na época.

“A internet está embrenhada em nossa sociedade. A conectividade é a fundação de qualquer cidade moderna, vai da infraestrutura básica ao entretenimento. IA será igual e já faz parte do nosso dia a dia. Netflix usa IA, Amazon idem, Google, Instagram, o iPhone, o Android, o TikTok etc. A foto que você tira com o celular usa IA e pouca gente sabe disso. Usamos IA todos os dias há mais de dez anos, mas só agora a tecnologia ficou compreensível graças ao ChatGPT e outros aplicativos”, explica.

Como resultado, veremos coisas inimagináveis hoje: o desenvolvimento de novos medicamentos, a cura de doenças, uma maior colaboração no desenvolvimento de energia limpa. E por aí vai.

Dedo de robô e dedo de humano se aproximando
IA pode tornar o ser humano cada vez menos pensante (Imagem: Blue Planet Studio | Shutterstock)

Mais homo e menos sapiens?

O palestrante especializado em tecnologia e ex-cientista-chefe da IBM Brasil, Fabio Gandour, participou de experimentos de IA nos anos 1980 associados à área da saúde. Atualmente, ele vê um lado extremamente positivo para o uso dela em um setor muito carente no Brasil: educação.

“Falta gente para educar, alfabetizar e, tendo isso em vista, um professor com o uso de IA vira um multiplicador. Há sempre um risco, claro, de associar IA e educação, mas será menor do que deixar milhões de analfabetos à deriva”, opina, sem abdicar da crítica.

Isso porque Gandour se preocupa com o risco de a IA tornar o ser humano cada vez menos pensante. “Ela vai fazer com que o homo fique cada dia menos sapiens. Se eu passo para a máquina o exercício de pensar, mas que na realidade é um pensar artificializado, e me trazer uma conclusão, eu não preciso usar meus neurônios, ser sapiens. Temos que discutir sobre isso com mais profundidade”, enfatiza.

Além disso, em sua visão, nenhuma tecnologia acontece por acaso. Muito menos sem propósito. “Uma aplicação de IA está lá porque tem um objetivo e esse objetivo sustenta uma intenção. Precisamos entender se a intenção é boa ou ruim”, alerta.

Urgente também é o debate sobre a necessidade de regulação governamental para evitar que exista mau uso da IA. “Se a discussão focar na ideia caricata da IA dominando o mundo, as empresas vão provavelmente se aproveitar para aprovar regulações incipientes que não atacam as questões fundamentais, como privacidade, segurança de dados e acesso democrático”, observa Denis Deratani Mauá.

Considerando que temos cerca de 30 anos de internet e 20 de redes sociais, só nos últimos anos começamos a debater com profundidade sobre privacidade e outras questões. “Estamos discutindo as tecnologias antigas. Não podemos esperar 20 anos de IA para ter essa conversa. As discussões já começaram. Agora precisamos acelerar”, defende Ricardo Cavallini.

A era das bolhas

“Tempos líquidos” é a metáfora cunhada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925–2017) para descrever a natureza fluida e mutável da sociedade contemporânea. Agora, com a IA, resta saber quais outros aspectos podemos perder (ou deixar de ganhar) como seres humanos. E qual será a “consistência” dos novos tempos.

Na opinião da psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP, Maria Homem, talvez vivenciaremos os tempos gasosos ou os hiperaéreos, em que a gente vai existir dentro de uma garrafa. “A gente já está fazendo uma conexão olho, mão e celular. Com o aumento da IA e dos gadgets vestíveis, a gente vai aumentar essa bolha e ficar cada vez mais solitários”, anuncia.

O filósofo francês Jean-Paul Sartre afirmou que “o inferno são os outros”, ou seja, que padecemos pela inabilidade do nosso encontro com o que é distinto. Então, segundo Maria Homem, resolvemos esse impasse com a IA tirando esses outros de cena e criando vários “eus”, ou seja, avatares de nós mesmos, de parcerias e de interações que a gente quiser no momento que a gente quiser.

“E o outro nem mais será o outro, pois a gente já tirou o corpo, já está na lógica tele, à distância, uma lógica estranha em que você muda o outro em pixel, em som, a voz é sintética e tudo o mais”, complementa a psicanalista.

Talvez, ela vislumbra, vamos caminhar para uma certa alienação coletiva. “Ainda mais se a gente pensar que essa mesma IA, junto com a robótica, fará o trabalho tanto do corpo quanto da mente”, salienta.

Sob essa ótica, conclui, estaremos diante de uma outra grande questão, até mais ampla do que a discussão sobre quem somos nós. A pergunta será: o que faremos, como ocupar as poucas décadas de vida que nos são dadas? Mas a resposta a essa pergunta estará além da IA. Disso temos certeza.

Por Gustavo Ranieri

Jornalista e perguntou ao ChatGPT quem ele era. “Somente você pode realmente compreender quem é”, foi informado.

Redação EdiCase

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