Descubra como a dança pode transformar a vida adulta
Na escola, repeti o ano duas vezes. Minhas notas eram péssimas. Eu era distraída, conversava muito e, embora gostasse dos professores, não me comportava em suas aulas nem seguia regras. Anos depois, já adulta e acostumada a me descrever como uma pessoa indisciplinada, incapaz de se concentrar ou fazer algo direito, com a certeza de que “sou assim e pronto”, fui questionada numa sessão de terapia: “Como você conseguiu fazer ballet por tantos anos sem ter disciplina?”.
Naqueles tempos de adolescência, enquanto eu era chamada de manhã na diretoria para ajustar a barra desfiada do uniforme – algo impensável no colégio tradicional onde estudei nos anos 1990 –, à tarde, costurava as fitas da minha sapatilha com o maior zelo possível. Por 15 anos dancei ballet clássico sem faltar, sem conversar, sem atrapalhar as aulas. Nunca negava desafios, acreditava em mim, sentia orgulho, estudava e me reconhecia entre pliês, pirouettes e grand jetés.
Autodescoberta por meio da dança
Com o passar da vida, porém, atropelada pela rotina de faculdade, festas, trabalho e maternidade, fui me distanciando da dança, do corpo, de mim – mas sempre com aquele sonho ou certeza imaginada de voltar um dia; um dia que nunca chega. Até que um acidente de bicicleta aos 39 anos me abriu os olhos para a passagem do tempo: a sensação dilacerante era de que eu nunca mais dançaria na vida. Fiz duas cirurgias, uma em cada joelho, e suportei esse vazio até me recuperar e, finalmente, concretizar a melhor escolha que fiz por mim depois dos 40: voltar ao ballet.
Num impulso, o brilho daquela menina capaz, dedicada e disciplinada voltou. A bailarina não era a mesma, claro, mas ela estava ali, eu sei. Assim como sei também que ela não era a única retomando a vitalidade naquela sala de dança, num espaço do clube Círculo Militar de São Paulo, que acolhe mulheres adultas, sócias ou não, para dançar ballet.
Perceber meu novo corpo e limitações não foi fácil, mas, só de estar lá, já me sentia vitoriosa, em plena jornada de transformação física e emocional. Segundo a minha professora Rena Cavalcante, a maneira como essas mudanças acontecem é particular e, na maioria das vezes, difícil, porque agitam as sombras.
“É um trabalho de vulnerabilidade, pois estamos falando de corpos que contêm histórias autênticas, com seus traumas, medos, frustrações e restrições”, explica ela, que também é coreógrafa e sustenta sua própria história de cura por meio da dança.
Foi uma honra, uma cura
Durante a pandemia, Rena perdeu o pai por causa da COVID e o filho Ravi no quinto mês de gestação. Um luto duplamente intenso que a fez criar um espetáculo ao som de Drão, de Gilberto Gil, na voz de Milton Nascimento.
Ao compartilhar suas dores e movimentos com suas alunas adultas, criamos um grupo – ou um clã, como passamos a chamar – especialmente para dançar sua obra, inclusive fora da cidade. Juntas, fomos de ônibus fretado ao interior paulista, feito adolescentes trançando os cabelos umas das outras, para apresentar Drão, de Rena, no palco.
Foi uma honra, uma cura e acho que muitos sonhos realizados. Voltamos diferentes para casa e assim seguimos, de mãos dadas, no vaivém das aulas, prestando atenção na gente, nos movimentos, nos imprevistos, nos sorrisos e na respiração, como se tudo fosse fonte de vida, um rito ancestral de união, celebração e arte.
Funções da dança
Na perspectiva histórica e milenar, a dança paleolítica tinha uma função prática. Servia para aprimorar as habilidades de caça e pesca e ainda estudar os gestos dos animais, representados nas pinturas rupestres. Depois, com o surgimento da agricultura, passou a celebrar a plantação ligada às estações do ano.
“A dança sempre foi uma das principais formas de comunicação da humanidade, inclusive meio de sobrevivência na crença de povos ancestrais que pediam e agradeciam colheitas por meio de rituais dançantes”, comenta Thaís Natale, uma das sócias do estúdio BLA – Ballet Livre Adulto, na Vila Mariana, em São Paulo.
O empreendimento surgiu da busca frustrada de duas amigas, Thaís e Larissa Santo André, por um lugar para celebrar e dançar, fazendo jus à origem dessa arte e, claro, que fosse compatível com a rotina da vida adulta.
“Buscávamos um espaço sem cobranças descabidas para a nossa fase, sem competição, sem aquele lado complicado que o ballet geralmente carrega. Queríamos dançar para ser felizes, realizar sonhos, espairecer, como uma válvula de escape mesmo, mas, acima de tudo, onde a técnica da dança fosse ensinada com excelência”, conta ela, que acabou formando com sua dupla um grupo independente para colocar tudo isso em prática.
Saudação aos deuses
Nesse caminho, a bailarina e professora de longa data, Marcia Ylana, se juntou a elas, transformando o BLA em escola. O lugar que elas tanto buscavam se tornou um convite às pessoas adultas ao encontro (ou ao reencontro) com a dança e o desejo de uma aproximação com o sentir e o mover.
“Dançar é simples genericamente falando, pois faz parte de algo que já é nosso: o movimento. E esse simples mover acaba impulsionando a vida, seja fazendo novas amizades na sala, subindo no palco para se transformar em algum personagem e até mesmo descobrir um novo jeito de se enxergar no mundo. Vemos constantemente mulheres ganhando autoestima, confiança e até melhorando quadros de depressão e ansiedade”, diz Thaís, lembrando que dança é arte, mas também saúde. “Seja por meio de processos químicos ou sensoriais, ela envolve habilidades emocionais, psicomotoras e até mesmo de memória. É um trabalho global do corpo”.
No período clássico da Grécia Antiga, terra onde um povo soube louvar as artes como poucos, Sócrates já dizia que a dança, vista como preparação para a vida e para a guerra, forma o cidadão completo. Talvez vez alguém pronto, com braços abertos em segunda posição diante do público e da própria existência, livre para o que der e vier.
Não há certo e errado
Nem sempre é fácil explicar em palavras o que acontece dentro de uma sala de dança, sobretudo quando se trata de práticas de improvisação e movimento livre. Nessa tentativa, a frase “é uma janela de oportunidades”, dita por uma aluna da Entredança, o laboratório criado pela artista Pri Torres para explorar a linguagem do movimento (via Sistema Laban/Bartenieff, baseado em quatro pilares: corpo, esforço, forma e espaço) e a dança-improvisação, chamou a atenção da professora, cuja proposta não pressupõe um modelo, não apresenta códigos preestabelecidos e não traz julgamentos do que está certo e errado, mas abre o repertório para combinar elementos que estruturam uma dança.
“É uma dinâmica muito tranquila para a pessoa ir (se) descobrindo e testando seus próprios movimentos, e aí, quando ela vê, já está dançando e confiando que pode ir bem mais além do que imaginava”, descreve a artista.
Ela se refere a uma força que, muitas vezes, a pessoa, mesmo adulta, nem sabe que tem e só percebe graças à coragem de se arriscar, em pequenos ou grandes gestos, e à autoconfiança que vai se construindo aos poucos nesse processo tão livre e acolhedor.
Até por ter fortemente essas características, suas aulas, que acontecem no espaço Simpatia, em Pinheiros, São Paulo, acabam atraindo perfis diferentes, incluindo até quem acha que não sabe dançar. “Posso dizer que já vi muita gente tímida, ou que vinha com uma crença muito forte de ‘eu não sei dançar’, sair totalmente desse lugar. Elas vão entendendo que há muitas formas de se mover”, diz.
O segredo da dança
O segredo, revelam as especialistas, está na ação consciente. “O fato de as pessoas poderem se comunicar sem palavras, numa outra linguagem, pede presença, sensibilidade e leitura do outro, e isso não só amplia um modo de estar na vida, como resgata o sentido de existirmos para além dessa condição tão rendida ao modo mental e virtual que vem trazendo tanta ansiedade, esgotamento e solidão. Sinto que as pessoas descansam e se surpreendem ao se sentirem e se verem em outras posições, com outros dizeres que não aconteceriam fora desse contexto”, avalia Pri.
Não fosse essa capacidade de olhar e de permitir ao outro que seja menos reativo e mais autônomo, talvez não pudesse encarar sua própria vida como uma grande dança. É que, segundo ela, todos podem enxergar a arte corporal não só como uma prática cotidiana, fazendo aulas e oficinas, mas também entendê-la como um modo de estar e olhar o bailado do nosso caminhar a Terra.
“É perceber o dinamismo das coisas, compreender integralmente como estamos o tempo todo em movimento, em mudanças (vivendo ou resistindo a elas) e em relação (com a gente, com o outro e com tudo o que existe). É reconhecer que ela pode ser nossa grande aliada nos momentos maravilhosos, mas também nos processos exasperantes”, destaca.
Quando o corpo desenha formas no ar, algo também se move dentro de nós até ganhar vazão. Um dançarino transborda o que poderia ficar guardado, longe da vista. Na expressão do sentir ganhamos potência, seja no palco, seja no solo cotidiano, sob aplausos ou na mais pura solidão. É que o amor pela dança nos faz arder de paixão pela vida.
Por Izabel Duva Rapoport – revista Qual Viagem
É jornalista e, muitas vezes, sente-se dançando também quando escreve.